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Estava muito satisfeita consigo mesma, muito mesmo. Nada de auto-ajuda, coisa meio infantil, só razão, razão e mais razão. Era feliz com sua lucidez mental, sua destreza, clareza de raciocínio, seus terninhos de executiva paulistana, cooper de duas horas, sua alimentação sem carne vermelha, sua displicência elegante quando tirava o laptop da maleta de couro francesa que incomodar mesmo, só o mencionarem sua origem do interior do estado, um certo calor no peito, fincando a unha na carne do dedinho. Mas conseguiu dar um certo charme à história : - Ccomo é mesmo Marta, é tão fascinante você ter nascido num monte de feno, seu pai estava mostrando um manga-larga para um comprador do Sudão, sua mãe sentiu-se mal, você tinha um cavalo que se chamava Raio de Luar Preso na Serra, ai que lindo! Armava uma história com a maior perfeição e esquecia o forno à lenha que cozinhava as espigas comidas com sofreguidão, galinhas-caipiras no quintal cabisbaixo, o pai curvado sobre o ancinho, mascando fumo escuro e escarrando, mãe que bordava os enxovais das usineiras, mão inchada e calosa, um milagre que criasse tantos bordados perfeitos:- Olha fia, acho que tô precisando de óculos, se me passa essa fronha fia, sentia o cheiro enjoado da cera no chão de cimento o gosto amargo da água no pote de barro. Entregara a fronha com um gesto irritado e prometera a si mesma sair daquele lugar o mais rápido que pudesse. Não via muito os pais pois que onde vivia agora não havia espaço para eles, não saberiam se comportar à mesa de pessoas tão sofisticadas, não era por mal, questão de senso comum, iriam ficar constrangidos, mandava dinheiro que isso é obrigação, lavava a alma como dizia alguém, que enxugar, nem precisava. É importante agora, venceu, venceu numa cidade rude e estúpida e mal-encarada, amiga das Pereira de tal, chiquérrimas, ela também é chiquérrima, fala duas línguas, assiste a bons concertos musicais, fala bem o português, é culta, bem informada comprou escritório num lugar bárbaro, graças à Deus não vai mais ver aquele pessoal chinfrim, brega, e navega na Internet. Navega, e bem. Adora. Nem de homem precisa mais, que homem, hoje em dia, se pode alugar para necessidades mais prementes. Passa de um site pra outro, fala com a Europa, fala em inglês, fala em italiano, faz compras, faz curso e olha com certa impaciência os que olham atarantados para o visor, não sabem o que é link, browser, modem, chat, tem dó, como é que pode, estamos no terceiro milênio, convenhamos! Quando o faxineiro foi pego mexendo no computador conversou com ele com voz pausada e baixa que não convinha gritar, gritar é para as verdureiras ou descendentes de italianos, além do mais, falam com a mão, que coisa patética; explicou com clareza como ficaria difícil mantê-lo na empresa, a confiança abalada, o que pretendia entrando assim, sem mais nem menos na sala dela, a diretora principal, afinal, sem querer ser desagradável, se ele não conhecia seu lugar, seus deveres, que direitos ela já sabia que ele conhecia bem. Ele ouvia calado, vez em quando, sorria, um sorriso apertado que lhe fazia mexer a orelha esquerda. Era miúdo e usava um macacão azul desbotado que se movimentava independente de sua vontade. Não, não era espião, só queria aprender a lidar com a Internet, sim, já tinha ouvido falar, não tinha nenhuma intenção de roubar nada daquela sala, só ver o piscar dos anúncios e poder navegar, como diziam. Ela o despede com um alçar de mãos, sem notar os dedos constrangidos pelo esforço de ouvir que se fecham em torno do cabo da vassoura.

O sábado amanhece chuvoso. Não faz mal, ficar indo ao clube no sábado nem é tão chique, melhor dar uma chegada no escritório e ver se a secretária deixou o relatório para ela ler, esse pessoal só pensa em cerveja e pagode no fim de semana. Sua sala parece mais escura, deve ser o dia, logo a luz descrente do computador ilumina o ambiente. Está entretida na Internet comunicando-se com um amigo no País de Gales, que homem encantador, quando seu corpo estrebucha violentamente, as pernas batendo frenéticas contra o visor, sem notar os dedos constrangidos pelo esforço de ouvir, que se fecham em torno de seu pescoço e o macacão azul que se agita com precisão quase elegante. Sem chat. Sem blog, Sem orkut. Ou facebook.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 08/09/2012
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