Maria Amélia e o tempo

Maria Amélia e o tempo

Nunca pensou em ficar velha, vez em quando, achava curioso mulheres que iam ficando com os braços flácidos e os cabelos com raízes brancas, nossa que feio, comigo isso não vai acontecer, essa velhice e os anos que passam, que coisa mais triste, faltava consciência do tempo, outros ficariam velhos, outros perderiam o viço da mocidade, outros ficariam feios e sem dentes e sem cabelo e gordos e surdos e usariam bengala, se levantariam com vagar das cadeiras e falariam, meio aflitos, sobre um passado que ela desconhecia. Nunca pensou em ficar velha, pois que a velhice estava tão longe e não dava pra se apalpar, pra se entender; seus pais sim, eram velhos, mas, pais sempre são velhos, nasceram velhos, ela sempre os viu velhos, era parte da vida; filhos jovens e pais velhos e depois havia os sonhos pra sonhar, os projetos e os bailes e os passeios e a atenção que despertava, os amores que despertava, a simpatia que despertava, eis que a beleza suscita coisas boas e banais e passageiras, fogos de artifício do ano novo, as famigeradas bolhas de sabão ou fumaça, até bruma, mas –boas- muito agradáveis ; talvez, para ela as coisas boas ficariam ali, petrificadas no tempo, sem se mexer, estátuas de alegria, sem fim, sem fim, pensava, só coisas boas, que aqueciam o coração, o tempo era vasto, o tempo era gordo, o tempo passava muito devagar, vivia distraído com os bailes e as flores e namorados e vestidos novos, o tempo esperava por ela, quando ela andava ele andava, quando ela sonhava, ele sorria e esperava, às vezes, até mesmo parava para admirá-la.

Em assim sendo, não se apercebeu quando a velhice foi chegando, era uma velhice vagarosa, foi se imiscuindo devagar por entre seus poros, seu rosto, sua voz, certo cansaço, alguém que não reconheceu de longe, vozes que se embaralharam, não é que não entendi, é que não estava prestando atenção na conversa, uma menopausa carregada de regras, que não pode comer isso e nem aquilo, caminhar muito, muita ginástica, socializar, a maldita terceira idade, como odiava essa palavra preconceituosa, só percebeu que algo não andava bem quando a chamaram de senhora na fila do banco: - A senhora fica na outra fila tá, da terceira idade, um calor lhe subiu pelo rosto; - Estou bem aqui, a senhora é quem sabe, o caixa a olha com indiferença e foi quando começou a prestar atenção em outras pessoas, que fulana está envelhecida, não se cuida que está gorda, com o marido que tem ainda tão bonitão, quando passava pela rua e ninguém a olhava como faziam antes, nossa tão linda a Maria Amélia, tão linda, chama a atenção de todo mundo, até criança olha encantada pra ela, quando viu que o formato de seu rosto, antes tão firme e bem desenhado começou a perder os contornos, quando chorou no Natal lembrando-se dos pais, quando dormiu sentada na cadeira e nem viu o programa tão aguardado, quando começou a prestar atenção nas árvores e pássaros, nas crianças e suas risadas, nas velhas casas pelo caminho, quando começou a sentir cheiros da infância, ai que delícia, cheiro de goiaba, de café feito em coador de pano quando se apercebeu parando para conversar com o zelador, o faxineiro, o caixa do supermercado, quando disse alpendre e ficaram olhando para ela com expressão de surpresa, foi aí que entendeu que estava envelhecendo. Assustou-se com a velhice. Muito. E foi um tal de colocar botox e outros produtos que lhe davam um ar de boneca assustada e ginástica que lhe incomodava a lombar; - Isso é problema na lombar a senhora tem que fazer ginástica sim, mas, devagar, comece com a hidroginástica, é um exercício excelente para a terceira idade, continuou odiando a palavra terceira idade e remédios para emagrecer, que creme para cabelos finos, que creme para as pálpebras, que ginástica facial, tudo que afastasse e prendesse o tempo, num desespero surdo, sem dormir. E então teve a idéia de pedir a uma entidade, aos deuses, aos espíritos maiores uns, não queria ser mesquinha ou parecer gananciosa, dez, quinze anos a menos em sua idade; pediu isso aos santos e na igreja eles tinham um tão ar solene e pouco compassivo com esse tipo de mazelas que saiu da igreja meio sem graça; de tanto pensar e se informar achou melhor pedir para uma entidade que controlava os ventos do mundo, quem sabe, não traria de volta os tais quinze anos, com uma lufada, era só mesmo pra aproveitá-los melhor já que a maturidade havia lhe trazido sabedoria, acreditava. A caminho de encontrar o intermediário que lhe se comunicaria com a tal entidade, repensa o pedido. Talvez fosse melhor esclarecer que gostaria de ser moça por fora e da mesma idade por dentro, física e mentalmente e se tivesse que atravessar a menopausa novamente hein, sem dormir, morrendo de calor, um fogacho em cada esquina, nem pensar, já que iría fazer um pedido que fosse um pedido bem feito e bem exemplificado. Em assim sendo, aproveitou para ponderar que seria mais conveniente ficar uns quinze ou até vinte anos mais moça, desde que convivendo com as mesmas pessoas, nada de se perder dos amigos e familiares, muito inconveniente e esquisito não reconhecer mais a família e os amigos, afinal com quem, vinte anos mais moça, iria estar tendo relações de amizade, de amor, de companheirismo e mesmo de inimizade que isso é inevitável como o tempo, com quem? Esclarecendo essa sua ponderação, houve por bem mencionar talvez fosse mais criterioso que, também mentalmente, já houvesse passado pelos percalços e “pegadinhas” que a vida lhe pregara, que já seria madura e sábia, que já teria aprendido com as mazelas da vida, que já saberia agradecer cada dia, que já estaria amando a natureza, que já estaria mais tolerante e afável, mesmo sem ler nada sobre os livros de auto-ajuda que ajuda quem se dá e a gente mesmo e pronto. já estava quase contente, havia delineado o pedido para se fazer à tal entidade, senhora dos ventos quando lembrou-se de Zulmira sua melhor amiga e de seu braço que chacoalhava feito geléia lhe dando adeus, dos amigos da infância que encontrara recentemente em festa de comemoração, nossa que noite tão alegre, quantas memórias, todos estavam velhos, ela ficaria moça perto deles, tão moça, olha lá a Maria Amélia, ainda tão linda, que sucesso, o tempo nem passa pra ela, fulano morreu, nossa a nossa turma começa a ir embora, será que a gente se encontra em outro lugar, por certo que sim, Deus faz outros bailes, outras praças, outras fanfarras, é mesmo, a gente vai ser feliz, vocês não acreditam, vão ver só, Maria Amélia os contempla, eles acenam, o Denis tem o cabelo tão branquinho, parece neve, com quem falar sobre o luar, as procissões, nem tem mais procissão, o Jardel lhe sorri ao longe, nossa morreu tão moço, aneurisma, a Ana Lucia está com câncer, a gente precisa ir vê-la, cadê minha mãe, assim tão moça como quero pedir à entidade, vou demorar para vê-la, os outros já terão ido embora, outro mundo, será que vou ficar como o retrato do velho, o tal de Dorian Gray, vendeu a alma, tem um tempo certo para todos, um seu tempo, tempo para todos, os animais, os humanos, as plantas, para aflita. Faz meia volta, resolve ficar velha mesmo. Dormiu bem naquela noite.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 07/09/2012
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