Eunice e eu

EUNICE E EU

Não me recordo bem dela, quando menina. Eram meus padrinhos, ela e meu tio, irmão de minha mãe. Essa lembrança é pálida. Lembro-me de que usei vestidos que me deu, eu já nos meus onze anos e que fizeram sucesso na escola, ela deveria ser muito magra, eu, muito esperançosa. Trabalhava como escrituraria na Faculdade São Francisco, aonde eu ia algumas vezes. Parecia datilografar com precisão, mas não fazia mais do que o estritamente necessário como muitos que trabalham com parcimônia. Quando saímos de São Paulo para o interior, ela nos visitou poucas vezes, na morte de minha avó, talvez outras duas. Retornando à São Paulo depois de dez anos, já que éramos viajantes constantes, nos visitava com mais assiduidade. Do que mais me recordo nela, era de seu sorriso, meio emparedado, plastificado, engessado, que permanecia em seu rosto mesmo quando ela não mais sorria. Seus olhos eram de um azul pálido, como tarde de outono, quando o sol, sem ter o que fazer na lida, vai dormir mais cedo. Foi-me dito que o casal lutou com dificuldade, o tio ficava de cueca para não se molhar enquanto lavavam os lençóis na banheira por medida de economia. Viviam no centro de São Paulo, num apartamento pequeno e bem arrumado. Há de se convir a gentileza e boa educação de minha tia, como um aparelho de som recoberto de isopor com o plástico com bolinhas. Ou você estalava as bolinhas e descobria algo interessante, ou o aparelho permanecia em silencio, parado, esperando que o ligassem. Era como se lhe houvessem dito:

- Você fica aí Eunice, e, em qualquer lugar, não se esqueça de sorrir e menear a cabeça, mesmo que não entenda ou não goste. Era um concordar sem concordar, um perguntar sem perguntar, um exclamar de borboleta que saia voando, voando, voando, um menear de cabeça, meio que esclarecendo, meio que obtuso, um éee, meu bem, minha nega, amorfo, meio bolha, meio tênue, véu de noiva ao vento, não havia um comentário de comprometimento, de desafio, de concordância, de profundo desprazer. Tudo pairava, meio que levitava, fazendo-me recordar do poeta “quem passou pela vida em brancas nuvens.......foi espectro de homem,....só passou pela vida, não viveu”. Assim eu entendia como sendo a tia Eunice. Meio egoísta, meio egocêntrica, meio simplória em cima de um muro alto, alto, vez em quando, mencionava:

- “Fulano, ou fulana, são batutas, é,ééé, batutas”, repetia para si mesma. Seus presentes, na infância e mocidade eram motivo de risos em família. Quase sempre, os mesmos; ou uma calcinha muito justa e que poderia cobrir só a nádega esquerda e a direita ficaria ali irritada e perplexa, ou, um calção-bermuda, daqueles que o Ronaldo Fenômeno está usando no momento. E pentes. Vários. Em tantas formas e ao longo de tantos anos, que nos permitiria pentear os cabelos durante o resto de nossas vidas. Nesse sentido, jamais teríamos problemas. Jamais. Mesmo morando em favela, na penúltima estação antes do nada, estaríamos com o penteado em ordem:

- “Noossa, pobrinha, pobrinha, mas sempre com o cabelinho em ordem né?” Ao longo dos anos, especialmente quando da morte de meu tio, pensei conhece-la melhor. Foi solicitado pelo médico que ele fizesse fisioterapia e que fosse cuidado com amor, em função do acidente vascular cerebral que sofreu. E isso não foi feito. Meu tio, para tristeza de minha mãe, foi colocado num hospital sem condições e eu o vi, meio débil, com escaras nos pés, amarrado e nu sobre uma cama, com lençóis de saco alvejado; ou pelo menos, a mim, assim me pareceu. Enfermeiras-clones o ajeitavam com rudeza e gestos quase cruéis. A família, então, houve por bem, se reunir e colocá-lo em uma clínica adequada, onde morreu após uma semana. Foi quando comecei a detestá-la. Por sua ignorância, sua falta de lealdade e ética, seu desprezo pelo companheiro de tantos anos, seu egoísmo ferrenho;

_ Não dá meu bem, você fica com o Toniquinho um pouco que eu vou almoçar fazer um bifinho, comida de hospital é um horror né é é é meu bem” e eu fiquei ali, no quarto do hospital, enquanto o tio, tão elegante e discreto, se debatia na cama em convulsão, nu, e me senti envergonhada e horrorizada por entrar em sua intimidade sem bater, sem pedir licença, escarafunchando sua dignidade e seu espaço, sua decência, seu pudor. Detestei-a por ter alegado falta de dinheiro para cuidar dele e, tempos depois, ter ido para a Europa. Por ter encontrado um novo companheiro, sem ter direito em função de sua inconsequência em relação ao sofrimento de meu tio.Durante, pelo menos, dois anos, minha mãe cortou relações com ela e me regozijei com isso. Mas ela, mansamente, foi se aproximando, ligando, como um gato que se enrosca em suas pernas, como criança que olha suplicante para o sorvete, esperando ser servida. E minha mãe, de coração manso, relevou o acontecido. Para mim, ficaram fiapos de desprezo na mente. Entre todos da família era tida como limitada:

- “Eunice é burra demais, muito limitada, não entende nada, fica ali com aquele sorrisinho de animadora de boate”, e mesmo ouvindo certos comentários não tão gentis, ela continuava teimosamente a sorrir, sorria tanto que um golfinho, num dia de sol cismou de brincar com ela no mar e ela gritava” sai,sai, mas o tal golfinho devia ter se encantado com seu sorriso; quando arrumou um companheiro, ninguém acreditou:

- Quem será? Ela não apresenta para ninguém, é um mistério.

Alguns acharam bizarro, outros não acreditaram, outros disseram que ela era muito engraçadinha e teria chances com o elemento masculino, eu não achei nada, continuei com meus fiapos de desprezo, portanto, não era verdade que nada achei, encontrei algo para pensar sobre ela.

Nos últimos anos de sua vida chegou-se a nós com bastante assiduidade; aniversários, almoços, casamentos. Surpreendi-me ao ouvir dela certa vez

- Éee minha nega , eu me faço de boba mas não ligo mesmo para o que falam e só faço, meu bem, o que quero,éee, disse isso com sua vozinha antiga e foi a única vez que vi seus olhos revirarem . Não gostava de cachorros, ai,ai, sai meu bem ai, sai e levantava as perninhas finas e eu ficava pensando porque eu deveria trancar o pobre cachorro tão velhinho e inofensivo, só pela sua aflição.

Foi envelhecendo com galhardia e uma alegria interior digna de admiração. E quando convidada a juntar-se as fofocas e comentários maldosos, sorria seu sorriso-fumaça, éee, pois éeee , meu bem.

Eu vi seu medo quando estava perto da morte e estendeu-me os braçinhos finos, a camisola que girava em torno do corpo encarquilhado, o cabelo em falhas perplexas, os olhos azuis com um brilho seco sob um câncer devastador.

- Não vá ainda meu bem, vou dormir um pouquinho, estou cansadinha, fique aí nessa poltrona, é bem confortável, ai, Nosso Senhor, que medo, que medo!

- Medo do que, tia?

- Não sei minha nega, não sei, medo, medo éeee.

Vi então um pouco de sua alma que minha raiva encobriu. Sua disposição em ser feliz, as humilhações que suportou com coragem quando, tantas vezes, chamada de burra, sua flor no cabelo saudando o Ano Novo, sua disposição ferrenha em não participar de maledicências familiares, sua constatação positiva para todos.

E, quando ela esticou os braços descarnados para mim, minha raiva de tantos anos, levantou-se e deixou o quarto ressentida. Eu a entendi e me entendi. Rezo por ela. Sempre.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 04/09/2012
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