Lourival no carnaval

Um aglomerado de gente e uma gritaria danada na manhã ensolarada de domingo. A via era meio rua, meio campo, entre as casas e a estrada de ferro. Raros os carros por ali. Por esta razão, a grama invadia sem pudor a rua de terra nua, cobrindo-a como um tapete verde.

No meio da roda, o velho Maneco, ajoelhado e com as mãos unidas em súplica, implorava:

- Chega, dona Ivone, não bata mais. Pare pelo amor de Deus!

Com uma ripa na mão, a corpulenta morena estava fora de si. Batia sem dó nem piedade.

- Velho safado. Aprenda a não mexer com as mocinhas. Até parece que não tem filhas. Não se dá o respeito...

O sangue escorria pelo rosto do seu Maneco, com a assistência passiva dos vizinhos. Olhares de quem aprovava a surra, divertia-se com a cena ou temia a agressora.

Dando-se por satisfeita, a mulher parou. O velho ensanguentado levantou-se com sacrifício. Chorando, foi-se refugiar e curtir a vergonha em casa, a poucos passos dali.

O motivo do entrevero foi umas gracinhas que o seu Maneco havia dirigido à filha mais velha da dona Ivone, mocinha de uns quinze anos de idade. A menina reclamou. A mãe não deixou para depois. Passou a mão na primeira ripa que encontrou e saiu para a rua. Ainda encontrou o galanteador na frente da casa e aplicou-lhe a inesquecível sova.

Dona Ivone era assim. Não postergava nada e não tolerava desaforo. Todo mundo já sabia, principalmente o marido.

Lourival era de bom gênio. O inverso da patroa. Não teria dado uma surra no velho, preferiria conversar, até porque eram vizinhos de anos e anos. Primeiro, apuraria os fatos com muito cuidado e, se a ofensa fosse realmente grave e impossível de reparação amigável, procuraria as autoridades.

E assim os opostos levavam a vida. Ela bronqueava, ele abaixava a cabeça e contemporizava. Gostava de umas pingas, mas não abusava. Ai dele se ultrapassasse os limites. O pau comia dentro de casa e ele invariavelmente levava a pior. E não era por falta de físico, visto que ele também era corpulento e forte. Era mansidão mesmo. Indisposição para brigas e discussões. Boa praça.

No entanto, uma vez por ano o Lourival se transformava. Virava outro homem. Bastava chegar o fim do expediente na repartição na sexta-feira que antecedia o carnaval, para o pacato moreno se deixar tomar pelo vírus da folia. Ninguém sabia ao certo onde ele se metia. Mas para casa só voltava na Quarta-feira de Cinzas.

Parece que andava pelos bares e inferninhos de Curitiba. Ou se atracava com alguma mulher e dormitava nos seus braços o carnaval inteiro. Será? Muitas vezes, foi visto no Operário, apreciando o desfile dos travestis no Baile dos Enxutos da segunda-feira de carnaval, na companhia do presidente Tatu. Também havia quem jurasse que falara com ele no Baile das Bem Boladas da Sociedade Batel, no domingo, justamente na hora do desfile das meninas das principais boates da cidade e ao lado do Dalton Trevisan. Bem possível. Quem sabe gastasse uma das noites para jantar e dançar na Boneca do Iguaçu, ao som do acordeão do Cláudio Todisco. Pouco provável. Costela de ripa na Tupã, na São João ou na Sociedade Caça e Pesca, sábado à noite, podia ser.

Muitos deliravam. Diziam tê-lo visto todo prosa na bateria da Não Agite, desfilando na Rua 15 de Novembro. Depois, trocando passos de mestre sala com a indiazinha gostosa de pernas roliças do Bloco Apinagés, de Antonina, que subia a serra para desfilar na Capital. Devaneio doido. O Lourival não era tão ousado. Não se arriscaria, sabendo que a dona Ivone e as crianças poderiam estar entre o público, na assistência.

Gente de língua ferina afirmava que ele hospedava-se na Otília. Ou na Irene. Talvez na Albertina, no centro da cidade. Os mais maldosos diziam que ele nem saía do bairro, andando de lupanar em lupanar na Zona do Parolin. Com certeza na Marrocos, Moulin Rouge, Jane 1 ou 2 e na Graceful não iria. Eram boates muito caras para o seu bolso.

Na Quarta-feira de Cinzas, ao meio-dia, Lourival postava-se defronte a delegacia central de polícia, somando-se a outros curiosos, para ver a soltura dos que haviam sido presos por arruaças e pequenos delitos durante o carnaval. Uma tradição de quando a cidade era pequena, e, para alguns, o último evento importante do reinado momesco do ano. Depois disso, pegava o rumo de casa. Chegava de mansinho. Não falava nada. Dona Ivone respeitava a trégua. Calava-se por medo ou compaixão. Ou pura compreensão.

Na quinta-feira, a rotina recomeçava. Levantava-se e sintonizava o rádio na PRB-2, para ouvir o Galpão de Violeiros, com Oswaldinho e Vieirinha e outras duplas caipiras, além do declamador sertanejo Zé Paioça de todos os dias. Sempre ao vivo. Depois, a Revista Matinal do Arthur de Souza. Terminado o café, vestia camisa branca, gravata, terno azul marinho. De ônibus, seguia para a repartição ainda com resquícios da ressaca. Pronto. De novo o Lourival da vidinha comportada, cordato e de poucas regalias. Até o próximo carnaval.


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N. do A. 1 - Conto baseado em fatos da Curitiba das décadas de 1950 e 1960. À dona Ivone e ao seu Lourival, ora ausentes deste plano e que emprestaram parte dos fatos dessa história, o autor rende sinceras homenagens.

N. do A. 2 – Na ilustração, Carnaval de Di Cavalcanti (Rio de Janeiro, 1897-1976).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 23/06/2012
Reeditado em 13/02/2021
Código do texto: T3740080
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