Bar do Mudinho

O baixinho atarracado de espesso bigode negro, gesticulando e andando para cá e para lá na esquina, chamava a atenção de quem passava na calçada. Os transeuntes o desviavam com certo receio, espremendo-se contra as portas da construção ou descendo o meio-fio e invadindo a rua. Entretanto, logo se tranquilizavam ao ver dois operários na marquise acertando a posição dos luminosos conforme as orientações do maestro. Sem batuta, só com as mãos espalmadas, regia os dois. Mais para a esquerda, mais para a direita. Levanta uma ponta, abaixa a outra. Sem dizer palavra. Vez em quando, abafados gemidos.

Mais estranho ainda achavam os que se davam o trabalho de ler o letreiro dançando nas mãos dos homens: Bar do Mudinho. Os mais atentos e observadores rapidamente concluíam quem era o dono do novo bar a ser inaugurado na região e não podiam deixar de especular como ele sair-se-ia no atendimento aos futuros fregueses.

Semana depois, o bar abriu as portas. A curiosidade, motivada mais pela característica do proprietário do que pelo estabelecimento em si, levou os primeiros frequentadores ao seu interior. Um ambiente sem requintes, mas muito bem planejado na disposição das mesas quadradas de quatro lugares, cobertas com toalhas de um xadrez laranja com fundo bege, e do mobiliário e adornos em geral. Nas paredes, gravuras com belas paisagens de um país ibérico.

O Mudinho reveza-se atrás do balcão entre a função de caixa e o serviço de barman. Sua mulher, dona Filomena, comandava duas empregadas na cozinha e também colocava a mão na massa. Dela eram as receitas e os segredos dos temperos. E também a rédea curta sobre as auxiliares, porém sem perder a compostura e o bom humor, para que tudo saísse no padrão que escolhera para a casa, esmerando-se na manutenção da higiene, qualidade dos ingredientes, competência no preparo dos quitutes e na rapidez necessária e possível para o bom atendimento.

Portuguesa nascida no Minho, dona Filomena veio ainda menina para a nova terra, quando o pai por aqui aportou em busca de oportunidades melhores. Trouxe na bagagem o dom para a culinária e as receitas de família. Gabava-se dos seus bolinhos de bacalhau, que aprendera com a avó desde tenra idade. Dizia que melhores do que os seus, só mesmo os da avó. Se ela queria ser gentil ou não, não se sabe. Mas que os bolinhos da portuguesa eram saborosos e sequinhos, e por isso os salgados mais apreciados do cardápio do bar e da cidade, ninguém duvidava. Com olhos exigentes, escolhia as peças de bacalhau no Mercado Municipal. E que ninguém tentasse enganá-la nisso. Qualidade inferior não aceitava.

No salão davam conta do recado os garçons Lambari e Léo. A alcunha do primeiro vinha do gosto que ele nutria pela pesca desses peixinhos, passatempo no qual saia-se com inacreditável destreza e sorte. Léo, na verdade era Heleodoro. Todavia, os fregueses achavam complicado demais pronunciar as cinco sílabas do nome. Então, certa vez, um deles gritou carinhosamente: Léo. E pegou, virou Léo. De tanto Léo para cá, Léo para lá, já nem se lembrava do Heleodoro. Mesmo quando dava seu nome oficial, como nos crediários das lojas, já ia falando Léo. Confrontado com o documento de identidade, corrigia. Oxalá pudesse mudar de vez para Léo. Já estava cansado de soletrar e insistir que era Heleodoro com h e a vogal e depois do l e não i.

- Heliodoro, não! Heleodoro - cansava de repetir, sem nunca saber se a grafia na sua certidão de nascimento era de fato a correta ou se fora vítima da ignorância ou capricho do cartorário.

Com dona Filomena no comando da cozinha, Lambari e Léo no salão, distribuindo simpatia e bom atendimento, mais a coordenação e supervisão geral do proprietário, não demorou nada para o Bar do Mudinho transformar-se em um sucesso na região. A propaganda boca a boca, com o tempo, trouxe freguesia até de lugares distantes, de outros bairros da cidade, que vinha experimentar os quitutes da dona Filomena, tendo os bolinhos de bacalhau na comissão de frente. Por encomenda e para um grupo mínimo de pessoas, a portuguesa preparava uma bacalhoada para ninguém botar defeito e se fartar a não poder mais.

Por sugestão do próprio Lambari, entrou para o cardápio a porção de lambari frito. Mais um êxito. E a freguesia mais assídua e antiga não perdia a oportunidade para brincar com o prato e o garçom homônimo.

- Traga o seu colega frito - quando pediam ao Léo.

- Hoje vamos comê-lo, vá se fritar na cozinha - se o pedido era para o Lambari.

Apesar do sucesso, o Mudinho não admitia abrir aos domingos. Esses dias eram reservados para a missa matinal, almoço e passeios com a família. Gostava de frequentar restaurantes, não só para impor merecido descanso a dona Filomena, mas também para observar o funcionamento das casas, o cardápio, o atendimento, a organização. Quando tinha chance, e gostava de alguma particularidade, ou mesmo para deixar registrado um elogio, fazia questão de cumprimentar e conversar com o dono ou gerente. Dona Filomena fazia o papel de intérprete. O Mudinho gesticulava os sinais em LIBRAS e ela traduzia para o interlocutor. A mesma coisa dele para o Mudinho, logicamente de modo inverso.

Tempos depois, por sugestão da clientela e considerando o potencial do ponto, o Mudinho decidiu servir almoço. Combinou com a patroa um cardápio simples e caseiro. Contratou cozinheira e mais auxiliares. Nesse expediente dona Filomena somente supervisionava, reservando energia para o período vespertino, mas sem se descuidar dos temperos e da qualidade. De segunda a sexta-feira o cardápio era o mesmo: salada mista, arroz, feijão, batatas fritas e bife. O freguês podia optar pelo bife simples, a cavalo, ou a milanesa. Às quartas-feiras, além do padrão, o menu incluía um prato diferente, que variava a cada semana, voltando a se repetir algumas semanas mais tarde. Aí a turma podia se deliciar com uma boa dobradinha, peixe a milanesa, língua com ervilha, rabada com polenta, almôndegas com espaguete. Aos sábados, sempre feijoada na cumbuca.

Mesmo vindo a conhecer a feijoada somente na nova terra, dona Filomena tomou gosto pelo prato e do seu preparo não abria mão. Deixava para a cozinheira e auxiliares a farofa, o bacon frito, a couve e o arroz. Da feijoada cuidava pessoalmente do começo ao fim. Como feijoada sem cachaça não é muito feijoada, o Mudinho franqueava à freguesia um tonelzinho com uma branquinha de Morretes, para o aperitivo. Quem preferisse uma mineira de Salinas, também tinha. Mas não era de graça.

A comunicação do Mudinho com os empregados nunca foi empecilho. As comandas eram bem elaboradas e nunca deixavam dúvida. Contudo, o Lambari e o Léo tentaram aprender a linguagem oficial de sinais. O primeiro não se saia tão mal, conseguia entabular uma conversação simples, mas demorando-se demais na gesticulação para formar as palavras. No entendimento saía-se melhor. O Léo não teve paciência. Desistiu logo, porque se atrapalhava muito e misturava tudo. Não havia surdo-mudo que entendesse. Para entender, pior ainda. Pela repetição forçada, apenas conseguiu assimilar uns poucos palavrões que o Mudinho, por brincadeira, às vezes lhe dirigia. Respondia com a gesticulação coloquial e universal para os mesmos impropérios e os dois acabavam rindo.

O tempo foi passando e o Bar do Mudinho mantendo o sucesso e a clientela. Ao atingir a adolescência, o casal de filhos dos proprietários começou a dar algumas horas de expediente, ora no balcão, ora no caixa e até na cozinha. Preparavam-se para assumir um dia o lugar dos pais, caso não decidissem por outro ramo ou profissão.

Um dia começaram a surgir comentários sobre o alargamento de uma das ruas da esquina do bar. A cidade crescera e os carros precisavam de mais espaço para circular. Falava-se em demolição das casas e sobrados de três quarteirões. Uma nuvem de preocupação e amargura desceu sobre os estabelecimentos que supostamente seriam atingidos pelo projeto. Alguns proprietários tentavam se tranquilizar imaginando justa indenização.

A prefeitura convocou os donos dos imóveis para uma reunião. Os comentários estavam transformando-se em realidade. Os engenheiros expuseram o projeto e entregaram a cada um dos proprietários um envelope contento uma carta do prefeito com o valor da indenização calculada. Alguns inquilinos comerciais também compareceram e saíram desapontados ao saber que não haveria indenização para fundo de comércio. Da mesma forma ficaram os proprietários que exploravam atividade comercial, como era o caso do Mudinho.

O dono do Bar do Mudinho não se conformava com o fato de receber indenização apenas pelo imóvel e nada pelo fundo de comércio. Um ponto naquela região da cidade, formado há muitos anos com sacrifício e honestidade valeria uma fortuna. Foi o que sempre pensou, colocando o valor na conta da sua aposentadoria, caso os filhos não quisessem continuar no ramo. Por isso, não assinou o acordo com a prefeitura.

Um dia, logo que o bar foi aberto, a primeira pessoa que entrou não foi um freguês, mas um oficial de justiça. O mandado que ele trazia dava conta de que a prefeitura entrara com ação de desapropriação do imóvel, a bem do interesse público. Estabelecia prazo para desocupação e entrega. O Mudinho sentiu-se na rua. Com a indenização proposta não conseguiria comprar imóvel equivalente na região e montar novo bar, mesmo aproveitando as instalações existentes. Contratou advogado e partiu para o confronto na justiça.

A freguesia ficou muito triste e solidária com o Mudinho. Os mais influentes procuraram ajudar mexendo os pauzinhos para que o valor da indenização fosse revisto e melhorado. Não houve meios. Os burocratas não aceitaram nenhum argumento, alegando que os valores obedeciam ao mercado e que fundo de comércio era algo fictício. Portanto, inexistente e sem direito a qualquer compensação.

Mas para o bem do Mudinho e felicidade geral dos fregueses, logo surgiu uma solução possível. A duas quadras dali, em rua também boa para o comércio uma ampla loja de tecidos fechara as portas. O proprietário do imóvel, entretanto, pedia um preço que o Mudinho não podia pagar somente com suas economias. Precisava somá-las ao valor da indenização proposta pela prefeitura e que contestava na justiça.

As discussões no Bar do Mudinho, entre os fregueses, deixaram por uns tempos de girar em torno de política, futebol e mulher, para focar o destino do estabelecimento. Dessas tempestades cerebrais, regadas a cerveja e alimentadas com bolinhos de bacalhau, brotou uma ideia. No dia seguinte, um grupo carregou o Mudinho, mais a dona Filomena, para uma reunião com o dono do imóvel à venda, para apresentar a proposta. Afinal, não podiam ficar sem o Bar do Mudinho.

Os homens propuseram que enquanto corria a ação na justiça, o Mudinho pagaria aluguel pelo prédio, com a garantia do direito de compra a qualquer momento e até um prazo determinado, por valor fixo e atualizado até a data do pagamento. O proprietário nesse período teria uma renda e um comprador acertado. O Mudinho não ficaria incomodado em investir em imóvel de terceiro, pois teria a garantia de que um dia ele seria seu. E a freguesia não ficaria sem o bar preferido. O acordo foi fechado e celebrado com uma cervejada. Desta vez paga pelo Mudinho.

O Mudinho, animado com a solução, passou a dedicar-se à reforma do espaço. Caprichou para que ficasse melhor do que o antigo, pois maior o espaço físico já era. Muitos sugeriram que ele aproveitasse para acrescentar ao nome a palavra restaurante, pois havia tempos que o estabelecimento não era apenas um bar. Poderia ser denominado, então, Bar e Restaurante do Mudinho.

O sol brilhava soberano na manhã de primavera. Na calçada, um baixinho atarracado, de cabelos grisalhos e espesso bigode pintado de negro, gesticulava e andava de um lado para outro, assustando alguns transeuntes. Como um maestro, orientava dois operários sobre a marquise, que dançavam com uma enorme placa luminosa, tentando encontrar o lugar e a posição certa para fixá-la, conforme desejo do regente.

Mais para a direita. Mais para a esquerda. Para cima. Para baixo. Um pouco para frente, para trás. O baixinho indicava com as mãos espalmadas. Um gemido abafado, vez ou outra. Ele buscava perfeição e os dois homens o fim do suplício sob o sol que já ia alto e lhes afrouxava os miolos. Finalmente o lugar e a posição ideal foram encontrados e a placa fixada com robustos parafusos na laje de concreto, com o letreiro anunciando: Novo Bar do Mudinho.

 
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 18/06/2012
Reeditado em 02/07/2016
Código do texto: T3730377
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