FAVELA DA MARÉ

Conheci Irmã Maria dos Anjos num almoço em casa de uma família amiga no bairro de Bonsucesso, Rio de Janeiro. O que mais me impressionou foram os seus olhos que irradiavam cor, luz, amor, perdão, compreensão e ternura.

- Maria, que freira linda! - exclamei com admiração.

Maria era a dona da casa, a anfitriã, católica praticante e amiga das irmãs Missionárias da Caridade, ordem fundada por Madre Tereza de Calcutá.

- Irmã Maria dos Anjos, Carlos está dizendo que você é muito bonita! - dedurou Maria.

- É verdade Irmã, a senhora é muito bonita! - concordei.

- Eu sei que sou bonita! Sou muito elogiada por minha beleza! - disse a bela freira, - mas, Deus precisa também de gente bonita, Carlos! A beleza exterior é de pouca importância, procuro cuidar com afinco da minha beleza interior! Isso é que me importa!

O almoço foi servido ao ar livre. Éramos quinze pessoas saboreando aquela apetitosa refeição: cinco homens, três crianças, sete mulheres e, dentre elas, três freiras. Foi um dia agradável e, em meio a tantas conversas proveitosas, colhi esta emocionante experiência que aquelas três freiras nos ofereceram em suas vidas de religiosas e missionárias do Amor Maior:

Favela da Maré, véspera de Natal do ano de 2005.

Mal anoitecera e as três freiras se dirigiram às suas vigílias natalinas. Irmã Consuelo foi até ao barraco de um casal de idosos - o homem paralítico e a mulher sofria do mal de alzheimer. Irmã Rita se dirigiu ao barraco de um pobre mendigo com suspeita de câncer. Irmã Maria dos Anjos se dirigiu ao barraco de um doente terminal portador do vírus da AIDS. As pobres Missionárias da Caridade, naquele dia movimentado, onde todos iam e vinham cheios de pacotes de compras e presentes, pouco conseguiram para minorar o sofrimento dos seus pobres "irmãozinhos". Coube a cada uma das irmãs, como refeição natalina um pão francês e um pouco de bolacha. Irmã Maria dos Anjos caminhava pelas vielas do complexo da Maré, chovera bastante portanto o caminho estava lamacento e escorregadio. Todo cuidado era pouco. Em determinados trechos tinha de caminhar sobre pedras e, ao menor descuido, pisaria naquela água suja e fétida que escorria à céu aberto. Enquanto caminhava, cumprimentava aquela humilde gente pobre e sofrida e mesmo assim conseguia transmitir alegria. À espreita estavam os bandidos, ela sabia, tinha de ser discreta. No começo fora difícil por causa de seus belos olhos azuis, teve que driblar os assédios por parte de bandidos e traficantes, ser gentil, amável com os adultos e carinhosa com as crianças. Com o tempo, aprendeu a impor respeito e atrair muita gente para o lado do bem, o lado do amor em Cristo e caridade cristã.

Já estava escurecendo quando Irmã Maria dos Anjos já estava ao lado do enfermo que mal podia se levantar.

- Tudo bem José Jorge? Como passou o dia de hoje? - foi a saudação da religiosa, que sem esperar a resposta prosseguiu: trouxe lençóis limpos, toalha de banho, roupa de vestir, sabonete e pasta de dente.

O ambiente era sombrio, penumbroso, não havia luz elétrica e uma réstia luminosa provinha de um ou outro barraco quando acendiam a luz. Tudo ali era paupérrimo: um barraco de um só cômodo onde mal comportava a cama de solteiro, um pequeno armário de roupa, uma mesinha, fogão, pia, um caixote onde estavam dois ou três pratos, panelas e talheres. Um bujão de gaz completava a decoração daquele ambiente pobre de um pobre morador. Um minúsculo quarto anexo servia de banheiro onde se faziam as necessidades fisiológicas num buraco aberto no assoalho de madeira e os dejetos eram atirados diretamente na água fétida e poluída; era ali também que José Jorge se banhava ou fazia o asseio matinal. A zelosa irmã limpou o que necessitava ser limpo, varreu o chão e espantou as baratas e ratos daquele recinto miserável e abandonado. Em seguida ela fez o asseio em José Jorge que estava sujo porque, já sem forças, impedido de ir ao banheiro sozinho, fizera as necessidades na própria roupa.

- Você está com fome José Jorge? - perguntou a freira logo após a tarefa de limpeza.

- Não estou com fome meu nobre anjo! - respondeu o doente numa voz fraca e pausada - O que seria de mim se não fosse a senhora? Os vizinhos nem lembram que existo; fugiram de mim quando viram o meu corpo todo tomado por sarcomas de Kaposi. Realmente o meu aspecto é feio e apavorante, até evito de me ver no espelho...

A irmã Maria dos Anjos desviava daquela conversa e citava a grandeza do amor de Deus e falava sobre Jesus, um Jesus todo feito de amor e de perdão. Versava sobre o nascimento de Jesus numa manjedoura, na maior pobreza, além dos pais Maria e José, os pastores e animais domésticos. Os anjos entoando cantos e saudando a criança com os dizeres: "glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade".

À medida que a noite avançava mais o estado de saúde do paciente piorava. O estado febril, a boca amarga só aceitava um soro caseiro por causa da afta. O pobrezinho vez por outra delirava e, em outras ocasiões, balbuciava palavras de desespero com o rosto suado por causa do estado febril:

- Irmã, Jesus nem lembra de mim. Sou tão miserável que o céu não vai perder tempo comigo... Veja que até os ratos e baratas estão deixando de frequentar este barraco miserável e escuro. Sou um farrapo humano que somente a senhora vem a meu encontro...

- José, se estou aqui em sua companhia, estou em nome de Jesus.

A tênue luz de uma vela mal iluminava o recinto. Batem à porta. Quem será? O pobre paciente vive só nesta cidade grande. Os pais e parentes vivem no nordeste. Os amigos se afastaram com a gravidade da doença. Quem será? O vulto branco da freira abre a porta. Era uma moradora da favela, vizinha de José que ofereceu um jantar natalino posto em duas quentinhas.

- Irmã, queira aceitar esta ceia para vocês festejarem a noite de Natal! - A irmã agradeceu emocionada enquanto a vizinha desaparecia em meio a escuridão da noite.

- José, além do pão e biscoito, temos agora um lauto jantar!

- Quero ver a senhora saborear a refeição. Não consigo engolir nenhuma comida e, vendo-a ceando, me dou por satisfeito, meu anjo de Deus! - balbuciou o moribundo José.

- Irmã, estou vendo Jesus. Ele está em pé a meu lado, sorrindo e cheio de brilho! Ele diz que me ama!

A freira chora, dominada por sentimentos de emoção, dor e compaixão.

- Está chegando a hora da partida - pensa a doce irmã Maria dos Anjos - é chegada a hora da oração.

- José, vamos orar! Agora você sabe que Jesus nunca o deixou no desamparo! Você está perdoado dos erros do passado, o sofrimento o purificou e agora está pronto para abraçar a verdadeira felicidade que é o amor de Deus e o amor de Maria mãe de Jesus!

- Irmã, obrigado por tudo, estou morrendo, estou indo ao encontro de Jesus - falava o pobre moribundo enquanto sorria, estampando no rosto a felicidade que o envolvia.

Meia noite, os fogos espocavam, Jesus nasceu, José entregava sua alma a Deus. Um silêncio de paz reinava naquela humilde cama enquanto uma misteriosa luz iluminava o corpo inerte.

Feliz Natal.

Carlos Lira

clira
Enviado por clira em 04/05/2012
Reeditado em 23/08/2017
Código do texto: T3649382
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