A amante do juiz
 
Depois que a mais velha, solteira e grávida de homem casado, suicidou-se no sótão, e a mãe morreu de desgosto, o restante da família decidiu mudar-se. Assim, o pai e as outras três filhas foram morar em um bairro distante e puseram a casa para alugar.

Poucas vezes aparecia alguém para dar uma aparada na grama, uma capinada ligeira no quintal. Mais nada.

Muitos meses correram até que a Kombi de uma firma de limpeza trouxesse uma equipe para uma geral. Faxineiras dentro e jardineiros no quintal e jardim; no final do dia a casinha era outra. Pintura ainda não precisava.

O guri que morava no terreno vizinho acompanhava a movimentação com o raciocínio mais ou menos óbvio de que se ajeitaram a casa, era porque viriam moradores novos. Torcia para que viesse moça bonita. Se o azar o brindasse com um rapaz, pelo menos que se tornassem bons amigos.

No sábado seguinte chegou um caminhão de loja de departamentos. Um senhor grisalho, lá pelos cinquenta ou pouco menos, acompanhava tudo e dava ordens. Descarregaram o conteúdo completo para uma moradia. Sala de jantar, copa, poltronas e sofá, jogo de quarto de casal, geladeira, fogão. Tudo. Até um berço, guarda roupa e cômoda de quarto de criança. Como tinham detalhes em azul, a cria certamente era um menino.

Em virtude do que tinha visto, o guri foi tirando o cavalinho da chuva. Quartos de casal e de criança. Então, moça bonita e solteira não viria.

Mais alguns dias e as janelas apareceram abertas. Sinal de que a casa voltava a ser habitada. O guri curioso não despregava os olhos de lá. Entretanto o dia passou e não viu ninguém. Nem nas janelas, nem no quintal. No jardim também não.

No finalzinho da tarde um carro preto e grande estacionou defronte a casa. O guri reconheceu o automóvel, que no dia da entrega do mobiliário estava parado logo à frente do caminhão da loja, e o homem que acompanhara o serviço, desta vez de terno e gravata.

Cerca de duas horas depois o visitante foi embora. Escurecia e as janelas já estavam fechadas. O guri lamentou não ter visto quem as fechou.

No dia seguinte a cena se repetiu. Janelas abertas, e ninguém aparecia. Pouco antes do anoitecer, o carro preto de novo. O homem desceu e entrou na casa pela porta da frente. Quando o guri se deu conta, as janelas não estavam mais abertas. Novamente lamentou ter perdido a chance de ver quem as fechava, quase sempre na mesma hora.

Os dias sucederam-se em toada igual. Apenas em um deles ele ouviu choro de criança. Nos outros, nada diferente.

O adolescente, cada vez mais intrigado, passou a aproximar-se da cerca que separava a casa dele da outra. Várias vezes por dia fazia embaixadas com uma bola de couro no quintal e, de propósito, arremessava-a para divisa. Ao buscá-la, demorava-se a espreitar as janelas. Equilibrava-se na ponta dos pés, na tentativa de enxergar alguém dentro da morada. Não via ninguém.

Sempre à tardinha o tal homem grisalho vinha fazer sua visita. Às vezes trazia sacolas de supermercado. Aos sábados e domingos não aparecia. Mas de segunda a sexta-feira não falhava.

Com o fim das férias, o menino passou a ter somente a tarde para vigiar a casa misteriosa. Estava tão intrigado, que muitas vezes distraia-se na aula, deixando o pensamento viajar até ela. Uma tarde, não aguentando mais o martírio da curiosidade, chutou a bola para o quintal vizinho. Um pretexto para pedir autorização ao morador para apanhá-la e enfim descobrir quem era.

Colado à cerca, na direção de uma das janelas laterais, bateu palmas. Ninguém atendeu. Repetiu o anúncio mais duas vezes. Na última, finalmente, uma mulher apareceu na janela.

- Dona, posso apanhar a minha bola que caiu no seu quintal?

- Pode. O portão não está trancado.

- Passo pelo vão da cerca. Lá no fundo falta uma ripa. Obrigado.

Fez passar primeiro a cabeça, depois o corpo magro. Deteve-se na tarefa o mais que pode, na esperança de que a mulher deixasse a casa e viesse até ele. Mas nada aconteceu. Um tanto decepcionado, apanhou a bola e atravessou a cerca de volta.

Concluiu que na casa residiam apenas a mulher e uma criança. Ninguém mais, porque quando trouxeram os móveis vieram apenas duas mobílias de quarto, relembrou. Uma de casal e outra de criança. E o único homem que ele via chegar invariavelmente ao anoitecer, e logo ia embora, seria o pai da moça? Ou será que...

Ela não aparentava muita idade. Pouco mais ou pouco menos de vinte, arriscou. O visitante, poderia mesmo ser o pai dela. Mas sendo ela solteira, divorciada ou viúva, por que teria uma cama de casal? Fosse cama velha, seria do tempo em que fora casada. Antes de enviuvar ou separar-se, caso viúva ou separada fosse. Mas era uma cama novinha em folha. Uma mulher sem marido, dormindo em uma cama de casal? O homem que vinha toda tarde, sempre sozinho. Trazendo compras, às vezes. Será que...

O mistério e a imagem da mulher na janela, bonita, cabelos negros, pele clara. Decote insinuante, pronto para deixar escapar os seios. Isso tudo agora já não mexia apenas com a curiosidade do menino. Os hormônios dos seus quinze anos entraram em ebulição, mandando mensagens eletrizantes para o cérebro, povoando-o com caraminholas variadas e sensuais.

Como o golpe da bola funcionou, resolveu repetir a dose. Mas desta feita foi mais ousado. Novinho, o guri, mas com topete.

Chutou a bola por cima da cerca de modo que ela fosse parar além da porta da cozinha. Ele passou pelo buraco e só então bateu palmas. Umas três sessões, como na primeira vez.

A porta abriu-se e a mulher surgiu de corpo inteiro. Entre nervoso e embaraçado, ele procurou justificar-se:

- Desculpe, minha bola veio parar de novo no seu quintal. Para não incomodar, vim pegá-la sem pedir. Mas não achei certo. Por isso resolvi me anunciar.

- Não tem importância. Não está incomodando.

Diante da brecha, os nervos acalmaram-se. No entanto, a mulher bonita, tão próxima, sozinha, e a imagem da cama de casal incitavam as caraminholas que se sucediam em alta voltagem na cabeça do rapaz. Cenas e cenas por segundo.

- Sou o Paulo. Paulinho, como todos me chamam.

- Muito prazer Paulinho. Eu sou a Paola. Assim como você, quase ninguém me chama pelo nome de registro. Preferem Lolita e eu gosto.

- Puxa, que coincidência. Paulo, Paola. Paulinho, Lolita, dois diminutivos. Legal.

- Pois é...

- Parece que você mora sozinha.

- Eu e meu filho. Bebê ainda. Vai fazer um ano.

- Ah! E o homem que vem todo dia, é seu pai?

- Não. É o pai do meu filho. Meu namorado e benfeitor.

- Desculpe-me a curiosidade.

- Tudo bem, Paulinho. Se a bola cair aqui de novo não precisa pedir, entre e pegue. Tchau.

- Tchau.

O guri voltou para o seu quintal, sentou-se na bola, e ficou ali matutando sobre a revelação que ouvira. Namorado, benfeitor... Namorado, vá lá, apesar de muito mais velho. Mas benfeitor? O que a moça quis dizer com isso? O que seria um benfeitor, nesse caso?

No outro dia, à toa no quintal e, como sempre, espreitando a casa, Paulinho pensava em um novo pretexto para ver Lolita. O da bola no quintal estava superado, tendo em vista que a moça franqueou-lhe a entrada para apanhá-la sempre que necessário. Por esse motivo, palmas, para atraí-la, não mais.

A grata surpresa. Sentiu o coração acelerar quando a viu na janela lateral. Inesperadamente a jovem estava lá, olhando para ele. Quando percebeu que a descobrira, ela sorriu e acenou. Ele respondeu ao aceno e foi para a cerca.

- Oi...

- Oi, Paulinho. Não está fazendo embaixadinhas hoje? Você é bom nisso...

- Não. Estou pensando em um trabalho escolar. Pegando inspiração.

- Vou preparar um suco. Quer vir tomar comigo?

- Se não for incômodo...

- Claro que não, venha.

Não foi necessário repetir o convite. Mais que depressa o rapazinho transpôs a cerca pelo vão sem a ripa e viu-se diante da porta no instante em que ela a abria.

- Que rápido, Paulinho. Veio voando?

- É a sede...

Enquanto ela cortava maçãs e uma rodela de abacaxi, da banqueta de cozinha, onde estava acomodado, ele admirava o corpo bem feito sobre pernas bem torneadas, não longas demais, muito menos curtas. Na medida certa para sustentar a escultura acima delas. Com os olhos fixos na bunda contida em um short azul marinho, foi flagrado quando ela voltou-se para perguntar:

- Gosta de hortelã?

- Pode ser - disse ele automaticamente, sem ouvir direito o que ela perguntara e esquecendo-se de que detestava hortelã.

Ela sorriu e tornou a dar-lhe as costas. Juntou três folhinhas de hortelã, no liquidificador, aos pedaços de maçã e abacaxi, adicionou água mineral gelada e acionou o interruptor.

Com o suco pronto, encheu dois copos, entregando um ao menino. Puxou uma banqueta de baixo da mesa e sentou-se de frente para ele. Foram sorvendo o suco em pequenos goles, sem pressa, em silêncio. Até que ela perguntou:

- Está gostando?

- Do que?

- Do suco, ora...

- Demais.

- O que você vai fazer depois?

- Ficar com você.

- Comigo? E o que vamos fazer, então?

- Tudo.

- Atrevidinho...

- Estou apaixonado.

- Mentiroso.

Sorrindo com malícia, ela tirou o copo vazio da mão dele e o depositou junto com o seu na pia. Voltou, pegou-o pela mão e conduziu-o ao quarto, como quem leva uma criança ao parque de diversões.

Ainda em pé, despiu um Paulinho mudo e atônito. Diante da estátua de olhos arregalados e queixo caído, transmutou-se em Eva no paraíso. Puxou o Adão perplexo para si, tombando com ele sobre a cama guarnecida com uma colcha de cetim lilás, e fez dele um homem.

Apesar de ele nunca admitir que aquela tivesse sido a sua primeira vez, ela tinha certeza que sim, pois o acompanhou contando mil vezes as estrelas do céu imaginário, nos sete minutos em que os dois passearam juntos por todas as galáxias. Até que despencaram do cosmo, abraçados e gozando infinito prazer, para mais tarde acordarem perdidos e despidos na cama novamente.

Fazia bastante tempo que Lolita só recebia na sua alcova o amante de meia idade. Aquele momento em que gozara a impetuosidade adolescente de Paulinho remeteu-a de volta ao passado, quando, adolescente também, dava para outros meninos na beira do rio que passava nos fundos da chácara onde morava.

Foi caindo na boca do povo. Um dia alguém soprou aos ouvidos do seu pai. Ao pegá-la no capão da margem esquerda do rio com o filho de um vizinho, o italiano austero expulsou-a de casa, às vésperas de completar dezoito anos. A mãe conseguiu uns trocados e embarcou-a num ônibus para a capital do estado vizinho, onde se encontrava agora. De bagagem apenas uma pequena mala com algumas roupinhas e uma carta da mãe para uma amiga de infância.

Na rodoviária de Curitiba, que não conhecia, Paola espantou-se um pouco com o movimento. Meio zonza e sem saber como procurar o endereço da carta, vagou por um bom tempo entre pessoas arrastando malas e carregando pacotes. No banco de uma lanchonete sentou-se para pedir um pastel de carne. Sentada ao lado, uma mulher bem vestida e madura puxou conversa.

Paola então contou para a desconhecida que precisava encontrar uma amiga da mãe no endereço do envelope que tinha na mão. A mulher disse que era muito longe dali. Contudo, poderia ajudá-la, abrigando-a na casa de uma amiga por uns dias. Mais tarde e com tempo, ambas iriam até a destinatária da missiva.

Agradecendo o socorro oferecido, embarcou com a mulher em um carro com destino ao abrigo provisório.

Quando a tarde morria, chegaram ao local. Foi apresentada à dona da casa, que a mediu dos pés à cabeça, piscando para a amiga em sinal de aprovação.

- Pode deixar a menina comigo. Tem futuro, vai ficar bem. Depois acertamos.

Despediram-se, com a desconhecida prometendo voltar dias depois para irem juntas procurar o endereço da amiga da mãe, conforme haviam combinado.

Paola não entendeu o significado das últimas palavras da dona da casa. Que futuro era aquele a que a mulher se referira? E o que elas teriam para acertar? Talvez uma dívida qualquer. Estava muito cansada para se preocupar com charadas, e o que importava agora é que tinha sido bem acolhida. Parecia estar em boas mãos.

- Vou apresentá-la às minhas meninas. Todas, gente boa. Você vai gostar delas - disse a senhora, dando um assobio tão forte que quase estourou os tímpanos da nova moradora.

Em instantes a sala foi tomada por várias jovens. Davam a impressão de que se arrumavam para uma festa. Algumas enroladas em toalhas, outras com os cabelos por pentear ou maquiagens incompletas.

- Como é mesmo o seu nome, minha filha?

- Paola.

- Meninas, esta é a Paola. Acaba de chegar. É iniciante. Precisa de uma madrinha para lhe ensinar os truques da profissão e as regras da casa. Vai precisar de um nome também, ou apelido. Quem quer uma afilhada?

Uma das moças prontificou-se ao papel de madrinha.

Paola não estava entendendo nada. Mal teve tempo de notar que o recinto não era uma sala qualquer. Ao redor havia várias mesinhas, poltronas junto às paredes, cadeiras. Em um dos cantos, um pequeno palco com uma bateria, microfones, caixas de som. Luzes indiretas. Parecia o salão de baile do clube da sua cidade de interior, só que bem menor.

- Menina, agora vá conhecer o seu quarto. Nas primeiras noites não quero que saia de lá. Precisa acostumar-se com o espírito do lugar. Depois... Bem, vamos ver.

A madrinha conduziu-a para o aposento. Não muito grande, com cama de casal e penteadeira. Bem melhor do que o que tinha na casa do pai.

De dia podia sair e andar pela casa. Ir ao banheiro, fazer as refeições na cozinha grande junto com as outras. À noite voltava ao confinamento, sufocando a vontade de participar da animação no salão, de onde chegavam atenuadamente música e risadas. Só se incomodava com os passos no corredor e o bater de portas quase a noite inteira.

Na terceira noite a madrinha trouxe-lhe um vestido vermelho, sapatos de salto alto, roupas de baixo novas e material de maquiagem. Disse-lhe que devia arrumar-se para a estreia no salão. Ajudou-a com a base, pós, rímel, batom etc. Orientou-a para nunca exagerar na pintura. A madame não gostava que suas meninas parecessem bonecas de louça. Elas tinham que ser diferentes das moças das outras casas da cidade. Como eram mais bonitas, não necessitavam de grandes artifícios. E a clientela selecionada conhecia as diferenças, razão pela qual nunca faltava trabalho para nenhuma delas.

À meia-noite em ponto Paola desceu ao salão, depois de ser anunciada com pompa pelo cantor da casa, justo no dia do seu aniversário de dezoito anos. Estava deslumbrante. Sentia-se uma estrela.

No meio do salão, um bolo enorme. Foi presente do primeiro cliente, um prestigiado deputado, que o pagou com a verba de gabinete. Sua Excelência era muito amigo de madame, por isso teve a honra de ser o primeiro e, naquela noite, o único no leito da estreante.

Acenderam-se as velinhas do bolo. Colegas e clientes cantaram Parabéns. A menina fez um pedido, como manda a prax, e apagou as chamas com um sopro só. Nunca houve tanta gente nos seus aniversários. Nem um bolo tão grande. Nem tanta alegria.

Paola entrava em uma vida nova, muito diferente da dita normalidade das pessoas comuns. Teria amigas e amigos incomuns. Fregueses. Nascia Lolita.

A desconhecida que a entregou à nova vida, não cumpriu a promessa. Muito raramente aparecia na casa para uma visita rápida ou apresentar uma nova candidata a moradora. A carta que Paola trouxera nunca foi entregue. Mas Lolita não se importava com isso.
 
Meses depois Paola escreveu para a mãe pedindo que não se preocupasse com ela. Estava muito bem, ganhando dinheiro e economizando. Quando pudesse iria fazer uma visita.

O tempo foi passando. Uma noite um senhor grisalho, corpo atlético, encantou-se com Lolita. Foi com ela e nunca mais com outra. Era um juiz de direito, frequentador antigo, que talvez por um descuido inexplicável, ou absoluta falta de sorte por nunca tê-la encontrado antes no salão, ainda não tinha reparado nela.

Lolita passou a gostar dele. Sempre foi muito bem tratada pelos fregueses, pois a clientela da casa constituía-se de homens finos e educados. Além disso, madame jamais permitiria desvios de conduta, nem que suas meninas fossem maltratadas. O juiz, especialmente, ia além do tratamento cortês e demonstrava, de certo modo, gostar dela também.

Um dia a madame disse:

- Lolita, a partir de hoje você é exclusiva do juiz. Não vai com mais ninguém e só desce ao salão quando ele estiver aqui. Ele vai pagar sua pensão. A mesada você acerta com ele. É bom freguês, tem influência, é amigo. Por isso não pude negar o pedido. E vai ser bom para você.

A jovem ficou contente por ter o seu homem e passou a viver unicamente para ele. Algumas colegas morriam de silenciosa inveja, porém não a molestavam ou discriminavam. A mesada era boa, ganhava presentes, carinho, bons tratos. Que mais podia querer?

Não havendo grande paixão tanto de uma parte quanto da outra, ao menos se podia dizer que se estimavam e desejavam-se reciprocamente com análoga intensidade, quer na prática do sexo ou por simples companhia. E havia entre eles, sobretudo, respeito mútuo. Um sentimento muito próximo do amor.

No entanto, um descuido interferiu no destino de ambos. Lolita engravidou. Num ímpeto sugeriu ao parceiro um aborto. Mas ele não concordava em violentar seus princípios, nem a lei. Afinal, era um juiz. E como tal não hesitaria em apenar severamente qualquer réu acusado de cometer o hediondo crime. Logo, ele não poderia atirar-se à condição de réu e condenar-se a si mesmo, ainda que fosse no âmbito restrito da sua consciência, o juiz maior, inclusive de muitos juízes.

Após o nascimento do menino, Lolita continuou morando no bordel. A criança era mimada por todas as meninas e estava tornando-se um bebê mal acostumado com tanto colo e atenção. Apesar disso, não poderia continuar ali à medida que fosse crescendo. O juiz até então permitia a situação inconveniente, em função dos cuidados que mãe e filho recebiam na casa. Mas, novamente, o dever de ofício e a consciência reclamavam uma solução digna.

Quando achou que tinha chegado a hora, comunicou a Lolita que ela e o filho iriam deixar o lupanar. Alugara uma casa agradável, onde ambos poderiam viver com conforto. Iria visitá-los todos os dias, menos sábados e domingos, sempre reservados à família oficial. Todavia, tinha planos de mais tarde, no momento oportuno, aproximar o rebento das duas filhas universitárias.

Foi assim que Lolita passou a ser vizinha de Paulinho, com quem gastava muitas tardes na cama, incendiando-se com o fogo da juventude sem compromisso. Reservava para o juiz, à noite, o sexo maduro e sem pressa.

Um dia, um advogado juntou petição a um processo, solicitando cancelamento da audiência devido a grave enfermidade do réu, conforme comprovava atestado médico apenso. Como era a última audiência da tarde e após dar despacho favorável, o juiz resolveu antecipar sua visita a Lolita e ao filho.

O inesperado evento não poderia ter vindo em melhor hora. Estava ansioso para dividir com a amante a notícia recebida no início da manhã, de que seu nome tinha sido incluído na lista tríplice submetida ao governador, para escolha do novo desembargador. Dava como certa a sua indicação, porque, apesar de ser o mais novo dos concorrentes, além do currículo razoável forjado nos longos anos de magistratura, tinha bom relacionamento político. Tanto o líder do governo na assembleia, quanto o vice-presidente do partido do governador eram frequentadores do bordel da madame, que ele próprio nunca deixou de frequentar, mesmo depois da casa montada para Lolita. Não ia mais lá em busca de sexo. Gostava do ambiente. Das músicas de inferninho. De conversar com as meninas e conhecer a história de cada uma. Por sua vez, elas apreciavam suas visitas, pediam conselhos, orientações para a vida, do que fazer no futuro, quando o tempo as tornasse inválidas para a profissão.

Além dos dois amigos importantes, confrades de bordel, jogava tênis com o procurador do estado nas manhãs de domingo, num dos clubes mais importantes da cidade. Os três exerciam grande influência sobre o governador, que, sem dúvida, não deixaria de ouvir suas opiniões e conselhos. Assim, já podia encomendar a toga da posse.

Querendo enfeitar a surpresa, comprou um  suntuoso buquê de rosas vermelhas em uma floricultura perto do fórum. Apanhou o carro no estacionamento e guiou para a casa da amante. Usou sua chave para abrir a porta e entrar pela sala. Pegou o corredor e, ao passar ao lado do quarto, observou através da porta entreaberta que havia alguém na cama. Naturalmente pensou que fosse apenas Lolita tirando um cochilo ou deitada por não estar se sentindo bem. Com as flores na mão esquerda, empurrou vagarosamente a porta com a outra. Estancou incrédulo diante do quadro à sua frente.

Lolita aninhava nos braços um garoto. Ambos nus. Quando o viram parado na porta, petrificaram-se. O juiz, embora surpreso e desapontado, não perdeu a calma, talvez acostumado a tomar decisões de condenar e absolver sem emoção. Em poucos segundos chegou ao veredicto e deu a sentença.

Largou o buquê, tirou o cinto das presilhas da calça, dobrou-o ao meio e ordenou:

- Piá, venha aqui. Vai apanhar de cinto.

Paulinho embasbacou-se na dúvida entre obedecer ou não. Por fim, decidiu-se pela primeira alternativa, pois não tinha saída. Para fugir, teria que passar pelo juiz. Então deixou a cama com as mãos entrelaçadas sobre o pinto encolhido de susto.

Quando estava suficientemente perto, o homem segurou-o com a firmeza de uma tenaz pelo braço esquerdo e marcou-lhe a bunda com meia dúzia de cintadas. Em seguida o empurrou para o corredor e ordenou que sumisse.


Paulinho não esperou para ouvir a ordem de novo. Saiu em pelo através da porta da cozinha, por onde sempre entrava, e varou a cerca feito um cometa. Nunca conseguiu entender como não havia deixado o couro ou qualquer outra parte da sua anatomia nas ripas.

Com tranquilidade, o juiz dirigiu-se à amedrontada Lolita, que tentava proteger-se com meio corpo enrolado no lençol, e espremida contra a cabeceira da cama.

- Amanhã não quero vê-la aqui. Vou deixar dinheiro sobre a mesa da sala. O menino vai comigo. No caminho penso no que dizer em casa e para a sociedade. De qualquer forma, vão ter que aceitá-lo. Quando você achar um lugar para ficar, ligue para o fórum. Vamos combinar uma maneira de você ver nosso filho sempre que quiser.

Foi ao quarto do menino e pegou algumas roupinhas ao acaso, tomando cuidado para não acordá-lo. Colocou as roupas em uma sacola de loja, acomodou a criança dormindo nos braços e saiu.

No dia seguinte Paulinho ajudou Lolita a levar duas grandes malas até o taxi. Acompanhou-a à rodoviária, mesmo com alguma dificuldade para sentar-se e para andar, em virtude dos vergões deixados pelo cinto do juiz nas nádegas e no alto das coxas.

A filha proscrita regressava à casa. O pai falecera de repente, meses atrás, sem que ela tivesse ido ao entrerro. A mãe era bem mais flexível, saberia compreender a circunstância do retorno, caso ela fosse impelida ou  decidisse contar toda a verdade. Ficaria uns tempos por lá, pensando no que fazer da vida. Se conseguisse um patrocinador, montaria uma casa igual à de madame. Em outra cidade, porque a cafetina não admitiria concorrência no mesmo nível. E padrão inferior Lolita não queria. Voltar para o bordel de onde saíra também não poderia. Madame era amiga do juiz e certamente ficaria furiosa com ela quando soubesse do acontecido. Enquanto não encontrasse uma solução, voltaria a ser somente Paola.

Na plataforma de embarque Paulinho e Lolita despediram-se com um abraço caloroso e demorado.

- Até um dia, Paulinho. Cuide-se bem.

O guri não respondeu. Sentia a garganta apertada. Tinha medo de chorar, dar vexame.

O ônibus manobrava de marcha à ré para, na sequência, aprumar-se na direção da saída da rodoviária. Lolita, sentada no lado da janela de um dos primeiros bancos, acenou para Paulinho logo depois de soprar-lhe um beijo. Ele ainda pode distinguir duas lágrimas escapando dos olhos dela. No entanto, a distância já não permitia que elas se misturassem às que, finalmente, encharcavam-lhe o próprio rosto.


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N. do A. - Na ilustração, Au Salon de La Rue des Moulins, de Toulouse-Lautrec (França, 1864-1901).
João Carlos Hey
Enviado por João Carlos Hey em 04/04/2012
Reeditado em 26/01/2023
Código do texto: T3593844
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