Môzinho - Cem dias sem laços - Cap XII

Anamaria veio recebê-los muito sorridente. Era alta e magra. Tinha a pele clara mas os cabelos eram pretos e lisos. Depois de beijar muito carinhosamente a face suada do velho marido, apertou a mão de Alberto, retendo-a demoradamente entre as suas brancas e delicadas mãos, enquanto manifestava de forma efusiva sua satisfação em receber um amigo do Môzinho, era como os dois velhos se tratavam. Pareceu-lhe a boa senhora ser uma dessas católicas rezadeiras que só falam em Jesus o tempo inteiro. A um canto do seu jardim muito bem cuidado havia um pequeno nicho com a imagem de uma santa, espalhados pelo gramado e aos pés de algumas árvores haviam pequenas placas de ardósia com citações bíblicas em caprichada letra cursiva. Isso causou-lhe um ligeiro mau estar, mas ela não manifestou suas crenças por palavras em nenhum momento sequer, se bem que suas atitudes, seu olhar, seus gestos, seu jardim e sua casa eram uma pregação muda.

Não obstante tudo isso, Alberto sentiu-se imediatamente em casa, pela sua cabeça passou logo a idéia de tomar um demorado banho de chuveiro, vestir uma bermuda e calçar umas chinelas, mas refutou a idéia. Não seria bom acostumar-se com essas coisas novamente, ainda estava longe de completar os cem dias. Anamaria pôs-se a preparar o almoço e os dois homens sentaram-se debaixo da mangueira onde fora colocada uma mesinha de madeira tosca com troncos aparados, à guisa de assentos. Um cantinho muito agradável.

A palestra de Dr Lauro era contínua, Alberto ficou ouvindo-o sem muito interesse no assunto. Observava a agitação da passarinhada nas árvores do pequeno pomar, num grande cercado de tela as galinhas ciscavam e cacarejavam numa profusão de ruídos, um galo índio vermelhão apascentava seu enorme harém desfilando com seu porte arrogante, bateu asas ruidosamente e encheu os ares da manhã com um canto rouco e demorado espichando o grosso pescoço de plumagem arrepiada pra em seguida ir baixando a cabeça até quase tocar o chão com o bico. Da cozinha vinha o cheiro bom de alho refogado, o que pareceu aguçar o apetite do velho que interrompeu a cantilena, ergueu-se com esforço e dirigiu-se á cozinha. Em poucos minutos apontou lá, trazenho uma garrafa de aguardente e um prato com torresmos seguros numa só mão, com extrema dificuldade, já que com a outra se arrimava na bengala. Alberto ficou na dúvida se corria em seu socorro ou se deixava-o enfrentar sozinho o seu desafio. Na dúvida, permaneceu quieto, apenas o acompanhando com o olhar e um sorriso de incentivo, afinal era o mínimo que podia fazer. O fato o levou a uma breve reflexão: em qualquer outro tempo de sua vida jamais teria se incomodado com a exitação que acabara de ter, mas naquele instante sentia-se incomodado. Ha pouco tempo atrás não se importaria em ter feito ou deixado de tomar qualquer atitude. Agora sofria por ter feito ou não alguma coisa, e isso era uma merda. Aborrecer-se por coisa tão insignificante. Prometeu a si mesmo salvar o assunto em desktop e voltar a ele nas intermináveis horas de solidão que teria pela frente rodovia afora, porque o seu anfitrião chegava à mesa. Levantou-se, apanhou o prato e a garrafa da mão trêmula de Dr Lauro. Antes de poder depositá-los sobre a mesa tosca, veio Anamaria literalmente correndo com uma toalha e dois copinhos oitavados.

_ Me desculpe, Sr Alberto.

Não entendeu o descabido pedido de deculapas.

Ela forrou a mesa e ajudou o Môzinho a se sentar, apanhou a bengala e encostou ao tronco da mangueira à atura da mão do velho. Ele a agradeceu com um olhar de amor, ela inclinou-se e deu-lhe uma bicota:

_ Não vá passar da conta, Môzinho.

_ Fique tranquila, Mô.

Ele passou da conta. Quando uma hora mais tarde Anamaria veio chamar para o almoço ele continuava falando, só que sua lingua estava pastosa e ele perdia o fio da conversa.

_ Mozinho!

_ Estou bem Môzinho. è que estou feliz hoje. Só isso.

_ Desculpe Sr Alberto. De vez em quando ele perde as medidas. Ajude-me por favor a levá-lo até a cozinha.

Enquanto seguiam, os três abraçados na direção da cozinha, Alberto sentiu-se personagem de um romance. Queria ver aquela cena de um ângulo distante e eternizá-la num conto magnífico.

Novamente aquela sensação estranha de que estava virando outra pessoa. Não gostava disso, sempre gostara muito de si. Por fim concluiu que devia estar também um pouco bêbado.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 10/03/2012
Reeditado em 18/10/2013
Código do texto: T3545770
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