2011 Motivos Para Querer Morrer

Isso é o que ela chama de "luxar": segura-lo com um alicate e fazer força de um lado para o outro enquanto o puxa pra baixo. Não sinto dor, mas a sensação também não é das melhores; é como se os dentes fossem enraizados na base do cérebro, e cada movimento que ela faz dá um comichão em algum canto recôndito da minha cabeça. Presumo que quando a anestesia acabar meu dia ficará perfeito. Há dez minutos que vem tentando arrancar o filho da puta; há pouco teve de serrá-lo ao meio. Não senti nada além do incômodo da luz diretamente na minha cara e da vontade enlouquecedora de cuspir. Há uma poça de saliva e sangue na minha garganta, e vez ou outra eu engulo um pouco da iguaria. O barulho dos metais contra os dentes é angustiante. Mas eu não demonstro nada além de serenidade e até mesmo indiferença com a situação - a doce apatia de ter aceitado o destino que me foi reservado. Ela diz que as raízes dos meus dentes são profundas. Ela diz que, ao cortá-lo ao meio, ficou mais fácil de extraí-lo. Ela me pergunta se quero cuspir. Sim, quero, e boto sangue pia abaixo. Muito sangue. Volta a cabeça ao banco e ela esguicha jatos d'água no novo vazio da minha arcada superior. Cuspo. Ela diz que ainda precisa remover uns pedacinhos que sobraram; uns residuozinhos. Ela utiliza aquele ganchinho pra fazer isso. Mais água. Cuspo. Sinto minha boca torta. No espelho eu enxergaria a vítima de um AVC - quem me dera! Ela diz que só falta dar os pontos. Passa a linha preta num anzol minúsculo e pontiagudamente afiado, com o qual perfura a gengiva (?) e passa/puxa a linha. Faz isso seis vezes. A sensação é de estar usando fio-dental - só que subcutaneamente falando. Agora ela quer que eu morda um chumaço de gaze que fora colocada onda havia o dente. Faço isso. Imediatamente percebo que não vai dar pra fazer o que ela quer: manter a mordida até chegar em casa. Acho que ela não sabe que moro do outro lado da cidade. Então eu me levanto - ignorando os pedaços podres e picotados do meu ex-dente sobre a mesa - e me olho no espelho; sorrio. Bom, penso, nunca fui galã, então tanto faz. Segundo ela, haverá sangramento até à noite. Segundo ela, se eu sentir muita dor, devo tomar analgésicos. Também não devo tomar sol ou ingerir coisas quentes. E sexo oral, eu pergunto. Nem pensar. E academia, eu quero saber. Só semana que vem. É quinta-feira, e eu pergunto se ela pode me dar a sexta-feira em casa. Ela diz que não, que não pode, e remarca para a próxima quinta a retirada dos pontos. Me entrega o atestado. Me leva até a porta e me deseja um bom dia. Irrualmetch, eu respondo. Do lado de fora o mundo continuava parecendo nem bom nem ruim demais. Comprei remédio, água e gazes. Estava com sede, a gaze que eu mordia já estava empapada e quanto à dor, bem, era por enquanto somente a de viver. Procurei o banheiro do Metrô República. Tendo encontrado, penetrei no recinto; fedia merda. Tirei a gaze e ergui na altura dos olhos: estava escura. Aquele vermelho forte, quase negro, do sangue. Jogo na lixeira como se fosse um absorvente. Passo a língua no buraco entre os dois dentes que também não pareciam ter lá muita longevidade. Os derrotados que ali se encontravam me ignoraram. Bebi da água que comprei e fiz bochecho com a água da torneira e a cuspi marrom. Não parava de sangrar. Dobrei uma gaze, encaixei-a no maldito buraco e mordi. Senti ânsia de vomito. No Metrô, a coisa começou a latejar. A doer. A sangrar mais e mais. A anestesia estava passando. Desci numa estação qualquer, enxagüei a carnificina, ingeri dois comprimidos e coloquei nova gaze. Cheguei em casa lá pelo meio-dia e fui direto pra cama, dormindo de imediato e acordando às seis da tarde com o incômodo da bola de sangue que virou a gaze. Levantei, comi alguma coisa, coloquei novo curativo e dormi até as oito da manhã do dia seguinte. Eu ainda sentia dor e perdia mais e mais sangue. Avisei que não iria trabalhar e voltei pra cama. Dormi até o meio-dia. Quando enfim acordei, me sentia outra pessoa - a tenra e fugaz ilusão de estar menos fodido depois de uma boa noite de sono. É isso ai.

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AGOSTO de 2011

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19/10/2011 – 07h55m

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 19/10/2011
Reeditado em 21/10/2011
Código do texto: T3286861
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