Adejante e Manezin, apresentação dos dois.

A primeira interlocução que pude presenciar entre eles, foi por causa da história dos peixes de nuvens, mas muitos outros casos vieram e quem sabe eu os conte em outra oportunidade.

Eles são dois tipos curiosos, um atende pelo nome de Adjante e está aposentado, diz que muito viajou e nunca viu uma Juliana feia, o outro se diz poeta-cronista mas já foi e detesta a profissão de cantadô-repentista , tem nome de Manuel, mas todos o chamam de Manezin poeta, ambos são filhos do vale. O Adejante reside na cidade e o poeta numa várzea perto daqui. Este nunca foi roceiro, pois sempre teve horror ao trabalho, foi cantador de viola e talvez seja por isso que é dono de uma língua ferina e nunca dispensa uma conversa fiada, que é como gasta quase todo seu tempo de desocupado.

O outro foi batizado e tem nome de Salomão, mas gosta de ser chamado de Adejante, prestou o serviço militar, viajou por vários estados, morou e trabalhou muito tempo noutras regiões, é homem de muitas profissões e práticas, tem estrada e bagagem, e é barbudo. Eles estão sempre em conversa quando se encontram e os assuntos dos dois quase sempre chamam a atenção dos que estão por perto. Não são adversários nos argumentos, são parceiros, que podem discordar e concordar em muitas coisas como se verá. Os dois não se parecem em nada, contudo são muito semelhantes na loucura da eloqüência. Já houve dias em que estiveram de mal um com o outro devido a desentendimento em suas conversas lá, mas isso durou pouco e nunca mais voltou a acontecer, embora não se intriguem, um e outro podem confidenciar a um terceiro as coisas que não querem dizer cara a cara. O Adejante ao me falar do Manezin, quando quer debochar de algum dos seus ditos o chama de mamute, mas só pra nós, ninguém por aqui sabe desse alcunha, e eu não sabendo o porquê de tal nome, ele me explicou: é que as idéias do poeta são tão fora de moda e época que é como se ele estivesse extinto sem saber. Foi por essas e outras ironias que muito ri e fui me afeiçoando a ele. Já o poeta o chama de pau-d´agua, que é como ironiza o viajante por este sempre gostar de um aperitivo dizer que foi e ainda é um pé-de-boi.

Estou na conta de amigo dos dois e não tomo partido, mas não abri mão de relatar o que pude presenciar nas conversas deles. O que sei sobre o viajante de barba e o poeta, ouvi deles mesmo em mesas de bar, em conversa de praça e festas onde sempre os encontro.

O adejante está aposentado, trabalhou o tempo que a lei exige, agora tem bastante tempo para gastar como quer. É um tipo bem curioso e agradável, suas opiniões, experiências e leituras o levam a conclusões que de vez em quando podem se transformar em pequenos discursos, pode de repente levantar a voz assustando seu interlocutor e berrar sem o menor constrangimento seus argumentos e lógica de bom locutor que foi e meio sofista que é. Diz que andou e aprendeu e que não vai deixar nada escrito, quem quiser que o ouça e escreva suas histórias, nisso se parece com o pessoal do time de Sócrates, Jesus Cristo e outros que não se preocupavam com lápis e papel.

Sempre me conta casos de suas aventuras quando está bebericando sua aguardente com limão.

Nos dias em que está meio ressacado é de um mutismo de taciturno crônico. Se o assunto que o Manezim vem puxar é coisa corriqueira, ele diz: isso é lugar- comum, fala uma novidade aí! Bicho-refrão! Ramerrão! se a cantiga que está tocando é velha e enjoada ele diz: cantai ao Senhor um cântico novo! Tem umas manias e confessa o que gosta e o que não gosta. Não gosta de pano em frente de espelho, de cadeira ou qualquer objeto em frente a portas, não gosta de encontrar coisa por cima de coisa sobre as mesas ou em qualquer lugar, mas diz que gosta muito de viver e aprender.

Diz que se chama Adejante porque quando estava no serviço militar o sargento observou que ele gostava de adejar, ou seja tinha um comportamento de pássaro que paira no ar, os companheiros de turma que sempre gostam de um motivo pra rir, resolveram o chamar de Adejante, aquele que é econômico e não bate asa à toa.

Diz que quem é da idade dele deve ter sido insensato alguma vez, e que quem tem paixão tem pesar. Não gosta de pandorga e faz imitações caricatas de vozes de cantores fanhosos e nisso me faz ver seu grande dom de palhaço, as pantomimas às vezes são tão grandes que fazem rir a muita gente por perto.

Foi vendedor de redes em Manaus, trabalhou em salinas no Ceará, foi pescador de peixe e lagosta, foi auxiliar de caminhoneiro, garçom, locutor de rádio, e tocador de pandeiro. Essas foram algumas das profissões que exerceu, mas suas habilidades são bem mais. É um sujeito genuíno, não tem nada de niilista, tem alguma coisa de pagão mas isso não o torna um herege. Crê no bem da humanidade e se diz cristão, é grande admirador de figuras importantes da literatura como Platão, Voltaire, Victor Hugo e Augusto Comte. Idolatra a figura de Benjamim Franklin, e diz que está pra ver alguém pior do que Hitler, nisso concorda com Manezin.

Fala dele mesmo com simplicidade, não é de contar vantagens e tem demonstrado ser um terno amigo dos animais. Eu o conheço há alguns anos e creio que ele, é ele mesmo e o que diz ser. É curto e grosso quando quer, em algumas vezes é de uma brutalidade de pedra, noutras pode parecer um pobre-diabo de uma ingenuidade santa. Pouco interroga, mas se o faz é pra saber no que os outros crêm, como foi no caso do peixe, aí escuta as respostas com paciência e não discute sobre crenças religiosas, mas se alguém lhe pede opinião sobre assunto que ele diz conhecer, então a coisa muda de figura, mostra o avesso e o direito sem papas na língua. É multifacetado nos seus assuntos, pode falar sobre a canonização de um santo e logo em seguida descer para uma cena escabrosa de libidinagem, na maior cara de pau. Eu sempre o achei com cara de antítese e acho isso muito humano. Em dias de bom-humor se torna um neutro que suporta lero-leros e isso é o seu normal, pode perfeitamente se tornar intolerante em alguns momentos se não estiver de bem com a vida, mas seus equívocos não lhe ofuscam o brilho.

Suas definições, convicções e opiniões fizeram por onde merecer minha atenção e apreço. Não sei se é mesmo sincero em tudo que fala, se não sabe em profundidade o que diz, ao menos demonstra a grande convicção dos que se amparam em alguma verdade, é direto, claro, sem subterfúgios. É incompreendido por alguns outros irônicos que o têm na conta de sabichão e ele sabe disso, mas, não é de malsinar ninguém, não se mete em polemica por contra própria, mas se se encontra no meio de uma é porque vieram cutucar a onça com vara curta. Tem dias que o encontro quebrantado no bar e ele se limita a sorrir tomando a sua caninha e fumando o cigarrinho. Não é de se queixar, demonstra mesmo grande saciedade, diz que não gosta de querela, mas há algum tempo já gostou, logo quando começou a trabalhar.

Para levar a sério isso de trabalhar foi preciso uma grande lição que aprendeu de uma história contada por um tio seu. Sempre ouvia na sua meninice e adolescência estórias e casos, contos com fadas, gigantes e assombração, aquilo podia ter um efeito aterrador que durava o tempo do conto e podia se prolongar até no sonho daquela noite, mas depois de um certo tempo ia vendo que não passava de uma fantasia, de uma invenção pra mexer com a imaginação dos noveleiros. Um dos contos que mais o impressionou e lhe serviu de lição e incentivo para trabalhar foi o caso do rapaz avesso ao trabalho, que era filho único e seu pai era rico. Um dia o velho se sentindo cansado e vendo a morte bem perto, resolveu dar um ultimato no filho, já que este só queria viver de farra com outros desocupados e nem mesmo mais freqüentava a escola. Chamou o filho outra vez e dessa vez não foi pra aconselhá-lo a mudar de vida, como fizera inúmeras vezes antes, mas sim para lhe dar uma tarefa, tarefa esta que era tudo ou nada para seu futuro. O velho lhe disse que sentia chegar seu fim e não havia ninguém mais para quem deixar seus bens a não ser para ele seu único filho, mas estava desgostoso no fim da sua vida, pois o seu herdeiro se comportava de modo a lhe anuviar mais ainda os seus dias já enfadonhos. Pois bem, estava decidido a lhe deserdar caso, não estivesse à altura de corresponder às suas expectativas, sua riqueza toda seria destinada a alguma instituição e ele, seu único rebento teria que se tornar responsável pela própria sorte e sustento após a morte do seu pai. Mas não queria isso e estava disposto a propor uma última tarefa ao filho, que era trabalhar e conseguir ganhar sua primeira rúpia, lhe dava o prazo de três dias para isso. O que o rapaz devia ganhar, qualquer um trabalhador assalariado ganharia sem muito esforço nesse prazo. Mas o preguiçoso se viu diante de uma coisa séria, primeiro era o tom de voz e os olhos do velho pai que o amedrontavam, sabia que o homem era homem de palavra, e sua palavra não voltava atrás, era sério, parecia severo e era, mas era bondoso também, o caso agora tomava outro rumo, era tudo ou nada, mas ele naquela noite estava angustiado e não sabia nem tinha com quem contar a não ser com os amigos de bebedeira e se dirigiu para a praça como era seu costume. Por lá chegando, os seus colegas logo notaram sua preocupação e abatimento. Souberam do caso, e um deles foi saindo com uma solução bem à moda de gente mentirosa: dispunha da quantia e o emprestava, mas exigia uma quantia exorbitante em juros que era pelo empréstimo e pelo conselho, pois bem,bastava pegar a quantia emprestada com ele e dizer pro velho que tinha trabalhado e tinha ganho aquele dinheiro, seu pai estava de cama e não tinha como contestar que o filho havia ou não trabalhado. Pois é, e assim foi feito, só que no dia seguinte à tarde quando o filho chegou com uma única moeda e a depositou na mão do pai dizendo que a tinha ganho com seu trabalho, o velho deitado como estava, tomou a moeda em sua mão, olhou nos olhos do filho por algum tempo, em seguida arremessou o dinheiro nas brasas da lareira e exclamou: você não ganhou esse dinheiro! Aquilo foi como uma bofetada na cara do jovem que, diante daquele olhar penetrante se sentiu mais angustiado do que no dia anterior, envergonhado baixou a cabeça e tremulo se retirou dali. Foi para a praça outra vez, e contou o acontecido e obteve mais uma vez uma proposta mentirosa de outro seu mal companheiro. Este ainda disse: está na cara que teu pai te observou e te viu limpo, sem aparentar cansaço e por isso disse que você não tinha trabalhado, mas se ele te ver suado, sujo e com traços de cansaço certamente vai achar que você trabalhou. Vou te emprestar o dinheiro e vais me pagar com um juro acima da média que é para compensar o bom conselho que te dou que é: amanhã à tarde procura fazer uma corrida e amarrota tua roupa, chega diante do teu velho com a moeda e diz que trabalhaste e ele não deve dizer que não trabalhaste. E assim foi e a cena se repetiu, diante do olhar do pai o rapazote outra vez ouviu a mesma frase do dia anterior antes do dinheiro ser arremessado nas brasas da lareira: tu não ganhaste esse dinheiro! E ele se sentindo incapaz de mentir, se afastou envergonhado pela segunda vez. Sentindo que a coisa ficava mais séria ainda e reconhecendo não ser capaz de mentir para o seu pai, seu descontentamento e apreensão aumentaram, não só porque agora mais do que nunca queria ser obediente e bom filho mas, também por ver que desbaratou mais da metade do tempo ouvindo seus péssimos conselheiros. Mesmo assim resolveu sair pra rua, mas dessa vez não procurou a companhia dos desocupados e saiu a andar noutra direção e depois de muito caminhar e cogitar seu caso, como quem pede ajuda ao Criador em pensamentos, de repente se encontra com um seu conhecido da época em que freqüentou o colégio. Este seu antigo companheiro estranhou o fato de ele se encontrar por ali andando só, e com aquela cara de preocupado, quando seu normal era estar sempre pela praça com os amigos, descontraído e risonho. Conversaram, e ele resolveu confessar seu dilema, contou-lhe que o pai lhe deserdaria se no dia seguinte não levasse à sua presença uma rúpia ganha com o seu trabalho. Esse seu companheiro de escola era de família pobre e por muito se ocupar com as suas ocupações não lhe restava tempo pra conversas bobas mas viu que aquele caso merecia bastante atenção de sua parte e aconselhou o rapaz a ir para casa descansar e se preparar para no dia seguinte fazer bastante esforço. Havia muitas atividades pelo campo e na cidade que podia exercer e ganhar aquela rúpia, bastava ele estar disposto e encarar o que encontrasse pela frente. E assim o rapaz fez, na manhã seguinte se dirigiu ao campo onde se ofereceu para trabalhar na colheita da juta, trabalhou aí umas duas horas e foi dispensado pois apareceu alguém com mais prática, mas recebeu seu pagamento, uns poucos trocados, depois trabalhou como oleiro, recebeu outra pequena parte, com o que ganhou nessas atividades comprou uma boa quantidade de ervas aromáticas e foi vendê-las na feira, por lá conseguiu mesmo com algumas dificuldades vender as ervas. Ainda na feira encontrou um homem analfabeto desejando que alguém lesse para ele uma carta e escrevesse a resposta, pagaria por isso, e lá foi ele ganhar mais esses trocados. Já ao meio dia, estava com setenta por cento da rúpia, cansado e faminto nem foi em casa almoçar pois o preocupava não conseguir atividade para ganhar o resto. Se deparou pela rua com um homem tentando conduzir uma mula, mas esta se recusava a andar, e o dono dela já se impacientava e ia agredi-la, foi quando o rapaz resolveu se intrometer e pediu para olhar de perto a pata da mula, descobriu um espinho e retirou-o, com isso ganhou mais uns trocados, se dirigiu na direção do rio e por lá encontrou um remador que estava com muitos passageiros para transportar, se ofereceu para a atividade e depois de muito suar, já no fim da tarde, estava com o restante para completar a tão difícil e desejada rúpia. Saiu correndo em direção de casa e lá chegando, entrou no aposento do pai, pediu sua benção e disse com voz cansada depositando as moedinhas na mão do pai: pai aqui está a rúpia que ganhei com o meu trabalho. O velho recebeu as moedinhas e olhou pro filho e pro dinheiro como que a refletir e após alguns instantes diz: Você não ganhou este dinheiro, mas antes de arremessá-lo contra o fogo da lareira, ouve o filho dizer em soluços: Meu pai! No mesmo instante o ancião detém o movimento e reconheceu diante do choro comovido do filho que ele já não era o mesmo, que havia sofrido uma boa transformação e disse que agora sim, estava certo de que tinha um filho digno de receber sua herança.

Adejante ao me contar esse conto que lhe serviu de impulso e incentivo pro trabalho, se emocionou e deveras senti certo estremecimento também.