A verdadeira história de Branquinha e Neguinho...

Andavam em bandos, viravam latas, rasgavam sacos plásticos, comiam sobras da feira, bebiam água da chuva, arriscavam-se no desumano trânsito da cidade...

E à noite, já exaustos, recolhiam-se à espera da alvorada, da manhã, de outro longo dia...

Branquinha era uma cadelinha branca, sem pedigree. Vaidosa que só ela, também atendia por Pepita.

Neguinho, um vira-lata de estatura mediana. Tinha certo brilho no olhar e no pelo negro e liso. Errante e vadio, vivia sujo, quase sempre ferido. A mesma rua que os libertava, também os maltratava...

Neguinho mancava, movia-se com dificuldade, mas era dócil e obediente. Bastava bater o pé que ele logo se assustava e saía de cabeça baixa, depois parava, olhava para trás, e seguia adiante, resignado com o destino que Deus lhe dera...

E assim, Branquinha e Neguinho viviam a imprevisível e inóspita rotina das ruas.

Pernoitavam à porta da escola pública, e, pela manhã, invariavelmente, circulavam entre pais e alunos, como se também aguardassem o sinal de mais um dia letivo...

Branquinha e Neguinho nunca foram maltratados. Muito pelo contrário. Vez por outra, eram surpreendidos com um afago, ou qualquer outro gesto de carinho. Em dias de festas, ganhavam sobras de refeições e, de longe a longe, até banho tomavam. Branquinha, quem diria !!! chegou a ser vacinada na Campanha Antirrábica de 2007; Branquinha tinha até RG; uma chapinha de lata presa à puída coleira, dava-lhe certa proteção contra as corriqueiras maldades urbanas.

Branquinha gostava de latir e saltar, divertir-se até cansar e, depois, ofegante, com a língua para fora,

(sic) (...) ah! como era bom espreguiçar-se no meio da rua, sem dar a mínima para os insólitos seres sobre rodas...

Bem mais sério e compenetrado, Neguinho vivia preocupado com o amanhã, (...) e, quem sabe, com o depois de amanhã.

Neguinho jamais largava Branquinha, pois, sabia que sem ela, a vida não teria o menor sentido. Por isso estavam sempre próximos. Bastava avistar Branquinha e Neguinho logo surgia de algum lugar.

A verdade é que Branquinha e Neguinho nem se davam conta do quanto eram felizes; ora sob o sereno das úmidas e frias madrugadas, ora sob o sol das tórridas e abafadas tardes de verão.

Até que um dia, que tinha tudo para ser apenas mais um dia na vida, por volta das 8:30 da manhã, a feia, cruel e temível carrocinha do Departamento Municipal de Zoonoses estaciona ao lado do meio-fio.

Logo, descem dois agentes. A poucos metros dali, Branquinha e Neguinho nem imaginavam serem eles as próximas vítimas. Um deles aproxima-se de Branquinha, e, com a destreza de um artista de circo, lança o laço... Sem ter para onde correr, Branquinha vê-se presa, estrangulada, sem saída. Debate-se por alguns segundos, mas, impotente, acaba por desistir...

Neguinho, já ciente de que chegara a sua hora, lutando contra tudo, busca refúgio no pátio da escola. Todavia, aquele não era mesmo o seu dia de sorte. Neguinho depara-se com o portão trancado.

(...) E agora, Neguinho !? E agora !?

Entre um e outro latido, Neguinho arrasta as patas no cimento áspero da calçada. Nesse momento, em mais um lance certeiro, o laço cai no pescoço de Neguinho, que, em vão, luta para continuar livre...

Neguinho é impiedosamente arrastado até a porta da carrocinha. O destino reservara-lhe a última viagem ao lado da companheira de todas as horas...

Os vizinhos aproximam-se. Uns dizem (sic) “Leva, leva essa maldita cachorrada.” Alguns intercedem por Branquinha, mas nada fazem por Neguinho. Um ou outro, para surpresa de todos, pede clemência geral e irrestrita...

Àquela altura, Branquinha e Neguinho, reclusos, já estão entregues à própria sorte...

(...) Quase sem querer, lembrei-me daquilo que, sabiamente, alguém um dia disse:

(sic) A palavra é a maior arma de um homem...

Foi então que decidi usar as únicas armas de que dispunha. Tentei, de todas as maneiras, convencer o chefe da carrocinha a libertá-los. E, em um recurso extremo, disse-lhe que até ficaria com eles, mas eram Branquinha e Neguinho, que não me queriam... Que, apesar de todos os riscos e desconfortos, ainda assim, preferiam a liberdade das ruas...

(sic) “Por favor senhor, não lhes tire o que eles mais prezam...”

“Não, não adianta. Nós também cumprimos ordens. Vamos levá-los”, sentencia o chefe da equipe, e, já revelando certa irritação, ordena aos subordinados :

“Tranquem a porta e vamos embora.”

Impassível, o motorista mantém o motor em marcha lenta,

(...popopopopopopopopopopopopopopopopopopopo...)

Pelas frestas do camburão escapam gemidos de dor e agonia. Os três homens recolhem os laços, sobem nos estribos, viram a esquina, e logo desaparecem no encalço de outros vira-latas...

Alguns já conformados diziam, (sic) se o destino assim o quis, que seja feita a vontade de Deus... e começam a se dispersar.

Ainda havia uma segunda-feira...

Era horário de verão e o sol, timidamente, surgia por entre nuvens acinzentadas e escuras. Só me restava fechar o portão.

Vi o céu clarear, e, como em uma tela de Renoir(1), assumir um tom pastel azulado...

Olho a rua pela última vez, e, qual não foi a minha surpresa, quando, ao longe, avisto Branquinha e Neguinho. Caminhavam lado a lado. Neguinho manquitolava, e seguia adiante, equilibrando-se em patas combalidas, e ainda incrédulas... Branquinha, um tanto perplexa, um tanto assustada, foi chegando de mansinho, sem fazer alarde...

Lembrei-me dos homens, de um por um; o do laço, o chefe da equipe, até o motorista eu visualizei, mas, lembrei-me, sobretudo, da força das palavras que não apenas movem montanhas, mas também desatam nós e destrancam carrocinhas...

De volta ao canteiro da praça, Branquinha e Neguinho espreguiçam-se, bocejam, trocam afagos, e lá ficam, a acompanhar o movimento de mais uma já quase ensolarada manhã de dezembro...

FIM

Conto de Zizifraga.

Janeiro de 2010.

Nota :Pierre Auguste (1841- 1919) Pintor impressionista francês. Renoir introduziu a “paleta arco-iris”, restrita aos tons puros e de máxima intensidade. A figura humana tem papel de destaque nas suas pinturas. Renoir encantava-se com o charme intrínseco de lindas mulheres, crianças, flores e os belos cenários da natureza. Nenhuma de suas obras sugere tristeza ou melancolia.

Zizifraga
Enviado por Zizifraga em 12/07/2011
Reeditado em 18/01/2012
Código do texto: T3090334
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