Conto urbano: A volta para casa

Tudo parecia bem há alguns momentos atrás.

Tinha um bom trabalho, um apartamento, um carro, uma linda esposa, e é claro, os gêmeos.

Contas, impostos, fornecedores, relatórios... Por que era tão difícil entender que uma projeção, não necessariamente é um contrato de garantia? Flutuações existem e são imprevisíveis. Estavam em baixa.

O mundo conspirava contra sua sanidade.

Mas tudo era suportável porque ao final do dia voltaria para seu recanto, e encontraria os lábios de sua amada. A garota que se tornou a mulher perfeita, que virou mãe, e ao mesmo tempo continuava sendo a eterna namoradinha do colégio.

Bons tempos. Hoje sente que não tem mais o mesmo pique de sua adolescência. Tinha a opção de voltar a nadar ou frequentar uma academia, mas sempre ficava para depois.

De certa forma, sentia-se bem do jeito que estava, a barriga nem atrapalhava, então não tinha do que reclamar.

A vida tinha suas curvas, mas era boa.

Após uma bateria de reuniões tediosas, aproveitou o intervalo do café para saber da lista do supermercado. Estranhou que ninguém em sua casa atendia ao telefone. Já passava das 5, Gabriela já deveria ter voltado da escolinha com os meninos. Talvez esteja no banho, voltaria a ligar mais tarde, depois de repassar seus compromissos com sua secretária.

Por força do hábito, desceu até o estacionamento. Riu sozinho, pois logo lembrou que era dia de rodízio, e naquele dia resolvera sair de casa a pé. A estação de metrô ficava a algumas quadras de lá.

Aproveitou a banca no caminho para comprar uma revista de ponto-cruz para sua esposa.

Ela começara há pouco tempo, e já fizera uma toalha bordada que ficou muito bonita na estante da televisão. Sua empolgação o fazia feliz.

Enquanto esperava o sinal abrir, por nada, levantou seu olhar e viu a selva de concreto se erguia ao seu redor. Mas lá no fundo, ainda podia ver o céu. A noite caíra, e ao procurar pelas estrelas, só conseguiu ser ofuscado pelas placas luminosas. Seu sonho quando criança era de ser um astronauta e viajar longe por toda a galáxia. Até agora só conseguiu chegar a um escritório cinza no décimo primeiro andar da capital.

Um grupo de adolescentes subiam eufóricos pela escada rolante contrária. Tentou imaginar como seriam os seus moleques ao chegar àquela idade. Hiperativos como já são, com certeza ainda trariam muitas dores de cabeça. Apesar disso, sentia-se ansioso para isso.

No vagão do trem, preferiu ceder o banco vago para a senhora com várias sacolas. Também porque queria aproveitar um pouco mais do ângulo de visão privilegiado da moça que estava sentada ao lado. Ela ouvia distraída uma música qualquer ao fone do celular, e deixava uma abertura generosa de seu decote por entre a blusa. Estávamos entrando no verão.

Desviou um pouco do caminho do apartamento para passar na padaria. A vitrine de cigarros no caixa era tentadora, mas decidira parar de fumar. A força de vontade por enquanto prevalescia. Comprou apenas alguns pães e mandou fatiar mais alguns gramas de mortadela. Sacou uma nota de vinte da carteira, e viu o dinheiro que havia esquecido de pagar à diarista de manhã. Mulher de humildade, nem fez questão de lembrá-lo da virada do mês. Na quarta-feira lhe daria um agrado, ela merece.

Alguns pés fora da padaria, ao virar a esquina mal iluminada, foi inevitavelmente abordado por dois rapazes. De certo, eles também viram o conteúdo de sua carteira. Notas azuis sempre atraem maus elementos.

"Passa a carteira e o celular, tio!"

Por um instante passou por sua cabeça as precárias aulas de karatê, mas sabiamente descartou. Não valia a pena. Que levem a carteira.

Mas o relógio não, foi presente de casamento.

E bang. Foi rápido assim.

Os dois fugiram. Ele ficou lá, sangrando, caído no meio fio.

Ainda deu tempo de pensar alguma coisa.

Quinta-feira era seu aniversário de casamento, e precisava reservar uma mesa em um bom restaurante.

Miguel do Lucari
Enviado por Miguel do Lucari em 11/07/2011
Reeditado em 25/08/2011
Código do texto: T3089476
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