O amor

Naquele dia, o sol nasceu tão redondo e vermelho que só parecia uma bola vermelha. Não tinha luz amarela. Era só vermelho como a raiva que explodia no coração dela. A raiva crescia. Tomava vulto. As palavras vinham à sua boca como unhas compridas; unhas afiadas e prontas a se cravarem no rosto daquele homem. Mas o homem não podia ouvir. Estava muito longe. Ela falava, vociferava, chorava sozinha. Seus passos decididos demonstravam que ela tinha rumo certo; que o caminho estava traçado. A faixa central funcionava como seta apontando para frente, para a direção do homem. As pernas compridas movimentavam-se num ritmo rápido e compassado. Ela tinha pressa. Nada nem ninguém poderia demovê-la de seu intento: recuperar Tuquinho.

Arrancaram-no de seus braços como se fosse uma muda de árvore rara, que deveria crescer em outro lugar pois a árvore estava doente, precisava de uma redoma que o protegesse dela. Ela que era incapaz de dar a ele a sustentação da vida. Ela que era incapaz de se controlar, que era uma coleção de deficiências, como poderia dar segurança ao menino? Ela que se revoltava com as dores, saberia cuidar do pequeno? Ela que chorava quando ele chorava e tinha medo de banhá-lo ou de passar a noite a sós com ele. Ela assim poderia ser responsável por ele? Os avós já não mais a queriam por perto. A mãe já a muito já a abandonara. E sua vida não tinha sentido há bastante tempo. A perda do pequeno a derrotou. Atirou-a ao fundo do poço de onde jamais conseguiu sair.

A pista central parecia não ter fim, nem mesmo quando chegou a avenida principal. Seus passos continuavam decididos e compassados. O motorista do caminhão, na preferencial, percebeu seu descontrole. Ela seguiu rumo a ele desconsiderando o perigo. A freada forte a acordou do torpor. Colocou as mãos no pára-choque do caminhão, que parou ao seu lado, tão perto quanto ela queria ter seu Tuquinho. Olhou para o motorista e em sua boca nasceu um pedido de desculpas. No outro lado da avenida a faixa central continua. É cedo ainda.

O coração batia forte. Parecendo sair pela boca, tamanho o susto, as mãos geladas tremiam enquanto enxugavam as lágrimas que banhavam o rosto. A avó choraria também se a visse assim , apesar de não ter mais paciência com ela. A avó foi quem a acolheu. Que a acarinhou, quando ela mais precisava de ajuda e compreensão. A avó a abraçaria naquele momento. O avô diria que já passou, não foi nada. Afinal foram os únicos que compreenderam as deficiências dela. E eles a recolheram. Apesar de tudo tiveram-lhe amor. Foi a avó quem mostrou a ela que uma vida tem muito valor. Que uma criança é a esperança da vida. Que uma criança traz muito ,muito trabalho. E exige muita dedicação para crescer saudável, assim, melhor que ela. E feliz. Para depois espalhar essa felicidade para todos os que convivem com ela. Ela lembrou que se esforçou para aprender a tricotar os sapatinhos com as lãs que a avó trazia. Mas ela adorava mesmo era ver o avô superando-se na fabricação do berço, tradicional na família. Bercinho de balançar! E quando aprendeu a tricotar as touquinhas de estrela, e de gatinho, os biquinhos de crochê, nos casaquinhos de pelúcia... As avós são mesmo umas fadas! Os avós são, com certeza, seus ajudantes. Caso contrário não teria comprado as baetas fofinhas e de cor suave como ela gostava tanto.

O tempo demorava muito a passar.

Aquela barriga grande a impedia de se movimentar como ela gostava. Como era acostumada a correr, a dançar... Dançar? Já não tinha motivos para dançar.

E veio finalmente o dia. O grande dia – que foi a noite. As dores eram demais para ela. Resistia. Queria fugir. Queria sumir. Mas tudo passa. As dores do parto são as que mais rápido passam. Basta colocar o pequeno nos braços da mãe! E tudo se transforma. Ela chorava. Temia. Temia derrubar o pequeno de seus braços. Temia afogá-lo no banho. Chorava de dor nas primeiras mamadas. O peito partido era se como uma faca penetrasse no seu corpo a cada sugada do pequeno. A avó a obrigava a amamentar. Tudo era tão difícil para ela. Secar as dobrinhas da pele do bebê, depois do banho, com os seus dedos compridos. Massagear a barriga do Tuquinho, quando ela estava inchada pelos gases, cuidar das assaduras... Limpar as casquinhas na cabeça dele...Trocar fraldas. Lavar fraldas. Passar... Não dormir a noite. Tudo isso ela havia conseguido. O Tuquinho crescia com os seus olhos lindos de céu e seus cabelos cacheados da cor do trigo maduro. Mamava. Chorava. Sorria. E como era belo seu sorriso. Ela reuniu as forças para continuar aquela lida de cuidar do filho. Até andava calma. Até já sentia vontade de cantar. De dançar...

Por que tudo tinha de virar de cabeça para baixo? Por que aquele homem apareceu na casa dos avós? Apareceu dizendo que gostava muito do Tuquinho. Que precisava de um bebê assim, já pronto, para tranqüilizar a sua esposa, que vivia só chorando por ter perdido o bebê dela?

Por que a avó o deixava pegar o Tuquinho no colo? O menino era dela e dos vós. De mais ninguém. Não daquela esposa que perdera o seu bebê. Aquele homem disse a ela que uma criança precisa de pai e mãe. E que ela estava ficando muito nervosa de cuidar daquele bebê; Que o choro do Tuquinho iria fazê-la perder o juízo. E a avó. A avó concordava com tudo aquilo que o homem dizia. O avô ficou em silêncio. Não a defendeu – e ainda disse que era melhor assim... Melhor o quê?

Naquela noite, o Tuquinho chorou, mamou e não dormiu no berço. Ela o enleou na baeta bem macia e dormiu com ele. De manhã, pensou, ao olhar o rostinho do filho, que não existia filho mais lindo nesse mundo.

A vida seguia lenta. A avó avisou que a mãe a viria buscar. Que era para separar as melhores roupas do Tuquinho. E colocar na sacola nova que o avô comprou. E a dela na mala. Ela obedeceu. O Tuquinho dormiu no colo do avô, que depois o colocou no berço feito por ele próprio. Cobrindo-o com a baeta suave, ela dormiu profundamente, mas não sem antes tomar aquele remédio que a avó estava dando a ela todas as noites. De manhã cedo, o Tuquinho não chorou. Ainda sonolenta ela estendeu sua mão, apalpando o travesseirinho. O nenem não estava lá, nem a baeta, nem a sacola nova com as roupinhas dele. A mãe entrou subitamente no quarto. Dizendo que era pra se conformar. Que não era pra gritar, não adiantaria. Que criança precisa de pai pra crescer direito. E que o avô e a avó já estavam cansados dela. E que ela deveria agradecer a Deus por estar viva.

Mas ela não estava viva.

Morreu quando arrancaram-lhe o filho. Quando o Tuquinho foi sorrir o seu sorriso lindo nos braços da esposa triste.

A faixa central seguia no outro lado da avenida. Passos frenéticos, olhos banhados, boca seca, mãos geladas. Rua transversal. As pernas compridas vestidas com jeans azul claro, aparecem sob o rodado do bi-articulado.