O mistério do corpo fênix

Epitáfio

O corpo esticado no chão frio do quarto do recanto, o corpo inerte, desnudo, virado de cara para baixo e costa a mostrar a tatuagem que tomava toda carne, uma linda fênix de olhos vivos e asas abertas, colorida.

Do lado esquerdo do pescoço a marca do crime cometido, um furo perfeito, profundo e o sangue escorrido, espalhado ao redor do defunto; sangue vermelho banhando todo o espaço habitado pelo corpo deitado, estirado no chão, morto, nu, tatuado, imóvel, sem explicação.

Do lado esquerdo uma cama desfeita, travesseiros desarrumados e a colcha revirada. Um criado-mudo com um copo de água marcado com batom, um terço, duas cabeças de alho e uma faca melada de sangue. A gaveta entre aberta e o telefone fora do gancho.

No espelho da cama uma blusa branca pendurada e sobre a cama uma janela de venezianas quebradas. Uma cortina surrada e um espaço por onde podia entrar frestas de luz no quarto. O rádio estava no chão ligado e seu chiado já anunciava que passava da meia-noite, tempo de esgotamento da transmissão da frequência de ondas curtas.

A porta havia ficado encostada e o trinco quebrado fazia com que ela ficasse batendo, batendo com a velocidade do vento que entrava pelo corredor e a fazia ficar nesse movimento constante.

O corpo ali estirado, sangrando com a cabeça virada para o lado que dava com a porta do banheiro do pequeno quarto. O trinco da porta estava melado de sangue, a torneira da pia aberta e a privada destampada. Que havia ali dentro?

O corpo estava morno, nu, de costa para cima... Nas pernas também tatuadas estrelas de olhos e boca em sorriso. Quem era aquele ser que ali estava? O que podia ter acontecido?

A noite e seus mistérios, a noite e o convite a badalação.

Enquanto ali inerte quanta imagens a passarem dentro daquela cabeça, por hora, desacordada. Imagens de tempos remotos, noites de pesadelo sonhadas com seres de outras dimensões: pessoas já mortas a duras penas, fetos abortados, seres estranhos, lugares céticos, pântanos... Imagens que não sabia se eram verdadeiras ou fruto da imaginação.

Os olhos se fechavam pesadamente e na mente um diálogo esquisito com um ser esquisito. Não sabia ao certo o que dizia aquelas palavras. Não sabia nem se morria, se era morto ou se nem nunca havia nascido de verdade. Uma voz rasgante agitava as suas ideias naquele momento.

Ali, caído, sem locomoção, sem se quer entender o que estava acontecendo. E enquanto calavam-se as batidas do seu coração, sua vida era passada a limpo numa mistura de morte e vida ao mesmo tempo.

Vamos aos fatos que interessam.

Prelúdio -

Sete e meia do dia, hora de acordar. O relógio dispara ao mesmo tempo em que seus olhos resolvem se fechar. Não consegui pregar os olhos direito durante toda a noite... Rolava de um lado ao outro da cama e nada.

Resolveu ir à cozinha, fez suco de maracujá forte e bebeu, acendeu um cigarro e não quis café. Enquanto fumava tranquilamente deitado, contava carneirinho e aos poucos os via fazendo careta, abrindo a boca, mostrando os dentes, pulando em câmera lenta, levantou-se, apagou o cigarro já no fim e foi ao banheiro, lavou o rosto e resolveu ligar o rádio.

Oito e meia e acendeu novo cigarro e resolveu abrir a garrafa de vinho guardada debaixo da cama. Encheu uma taça e resolveu olhar o movimento pelos buracos da janela do quarto fechado, abafado. No rádio uma música triste invadia os quatro cantos do quarto e dentro de si a sede de mais um gole, e mais alguns goles e meio tonto resolveu novamente voltar à cama.

Aos poucos viu que o rádio perdera a freqüência e agora poderia dormir. Sentia um cansaço no corpo e os olhos pesados. Passou então a observar os pingos de água que caiam das meias que havia lavado e estendido antes de resolver dormir. Era dez e vinte da manhã e um calor insuportável invadia o quarto. Tirara as meias e observava atentamente os pés, os dedos e os movimentos. Abrira o zíper da bermuda e deitara de bruços na cama.

O abajur ligado e entre os dedos mais um cigarro e um gosto amargo na boca. O vinho resolvera voltar, um embrulho no estômago, a mistura do maracujá com o vinho não parecia ter sido boa ideia. Sentia as ideias rodarem e uma necessidade de riso. Sorria de si, sorria para si, sorria e não conseguia entender o porquê de tanto riso. Era uma volta à infância e levado pelo embalo do vinho tornara-se maroto, lúbrico, sensual, serelepe, malcriado. Abria e fechava o zíper em movimentos ritmados, depois roçava o corpo no travesseiro e mordia os lábios. Simulava cenas e vivia cenas liberadas pelo estado de si naquele instante. Era instantâneo, levado e suplicava a si o gozo narciso daquele momento.

Depois de mais algumas horas, a chegada do vento quente. Meio dia e meia hora pelas badaladas das buzinas dos carros de fora. Que fazer agora? Resolveu se divertir mais um pouco com o próprio corpo. Foi a geladeira, pegou um garrafa de água gelada, bem gelada e despejou sobre si. Sentiu a camisa colada ao corpo e passou a acariciar os peitos. Gostou da sensação e com a ponta dos dedos foi delineando os espaços latentes do dorso de macho. Massageou o umbigo e sentiu suaves os pelos pubianos. Tirou camisa e estendeu no espelho da cama. Levantou-se, ergueu o colchão e tirou algumas revistas pornográficas e passou a folheá-las. Não prestava atenção no que estava escrito, apenas nas imagens, nos corpos nus e nos movimentos sugeridos. Por segundo sentiu um alívio no corpo seguido de inquietação. Imagens vieram a sua lembrança e sentiu um gosto amargo na boca.

Náusea, mais náusea ainda e um sentimento de punição de si. Passou a se arranhar e a bater fortemente no rosto. Voltava às revistas e deliciava-se com algumas cenas. O corpo respondia e ficava em sinestesia, abduzido, em êxtase. Estava se vendo e o que via não lhe agradava. Passou então a rasgá-las e depois se dirigiu ao banheiro e colocou os retalhos de papel na privada, vomitou os líquidos embrulhados no estômago e sorrio de si ao mesmo tempo em que se via no espelho da pia do banheiro. Socou sua imagem a estilhaçar todo o espelho pendurado, lavou as mãos e meio sonolento não se lembrou de fechar a torneira. Melou a maçaneta da porta de sangue e voltou a se deitar e esperar o sono chegar.

Quase duas horas da tarde. O sonho não vem, não vem à serenata da calmaria das noitadas e os olhos abertos vagam pelo telhado enfeitado em teias de aranha. Viu-se aranha e passou a inventariar-se por estalos de memória. Sentiu a mão suave da mãe a lhe afetar o rosto e dos olhos a deitar algumas queixas. Sentiu os beliscões recebidos por todas as travessuras aprontadas e a voz da mãe: “quantas vezes terei de dizer para que você aprenda?”, ao mesmo tempo em que sentia os lábios quentes de beijos afetados por lembranças e recompensas.

Um vulto surge em sua frente às cinco horas da tarde. Sonolento, torpe, mira a porta e somente percebe que se abriu e se fechou. Um corpo estranho que sobe os degraus, atravessa o corredor, abre a porta e vem ao seu encontro. Cruza o quarto, chega à cama, arrebata-lhe o cigarro entre os dedos e de dedos cruzados vai ao encontro do corpo desnudo, sem camisa, sonolento e lentamente as bocas se querem, se necessitam, se respiram e se sugam.

É servida uma taça de vinho e o batom retocado é deixado como marca na taça posta sobre o criado-mudo da cama. Os dois se embebedam, se doam, se prensam e na pressa dos amassos, ele nem se dá conta que está nu, como de costume, não se percebe assim nem pelo frio que faz naquele fim de tarde, enquanto o ser chegado se veste por completo. Está de bota longa, de longos seios e rabo de cavalo. Sobre o corpo lingerie carmim e negras luvas nas mãos.

O colchão treme. Treme os corpos. O vento treme. Treme o tempo e já são seis horas, o intrépido tempo intermediário entre o dia findado e a noite acalanto, instalada no corpo estatelado sobre a cama num frenesi de exaustão: Dorme? Descansa? Morre? Goza? Grita? Clama?

Interlúdio

Jorge tem vinte e três anos de idade e é um jovem pacato. Desde os treze perdera os pais em acidente de carro e foi criado pela vó materna. Sempre chamou a atenção pelo corpo espadaúdo queimado do sol e olhos verdes. Gosta de ficar sem camisa e calção curto. Passava o dia a correr pelos morros e matas da redondeza e caçar passarinhos.

Alguns dizem que fora violentado pela própria sorte aos quinze anos. Uma viagem inesperada da avó a casa de parentes distantes fez com que fosse parar na casa de parentas carolas e mal amadas. Certa noite enquanto a avó fazia trabalho para curar doença de irmão enfermo o jovem mancebo era atacado por senhoras e levados a exaustão sexual. Daí passou a se vender e saciar o prazer alheio não por sentimento, mas por interesse financeiro e fez desse ofício seu ganha pão.

A avó morreu de desgosto quando o pegou no flagra com uma vizinha amiga de longa data. A beata carola responsável pelo dinheiro da oferta. Moça velha e devota em também lavar as vestes íntimas do vigário. A dita cuja tinha a fantasia de deitasse com o jovem garanhão frente ao oratório da igreja matriz enquanto ele a pegava por trás e assim o profissional foi realiza-lhe a fantasia pela caixinha ofertada naquele domingo de festa do padroeiro. De costa não via a velha senhora chegar como sempre: negras vestes e guarda-chuva preto em punho, fizesse chuva ou sol. Caia tesa ali mesma ao mesmo tempo em que a outra se ajoelhava em prece de gozo e o jovem já fechava o zíper da calça guardando o objeto de trabalho.

O caso teve repercussão e por curva tosca do destino uma armadilha foi feita para o jovem. Irmãos da dita vizinha quiseram lavar a honra da irmã e num dia qualquer de lua minguante o jovem mancebo fora arrastado ao curral do gado e feito pasto ia sentindo a ira dos irmãos em seu corpo. Os homens rasgavam-lhe a roupa e amarrado pelos pés e pelas mãos era usado, sentia seu corpo deflorado, mas não sentia dor. O cheiro do curral e o ato grotesco provocava em si uma onda de excitação e prazer que o fazia gemer, delicia-se enquanto os outros acham que estavam ensinando uma lição.

Depois já era meia noite e o corpo criara outro formato, chorara outras dores, se embriagara e estava exposto em outras camas, nu. O corpo esticado no chão frio do quarto do recanto, o corpo inerte, desnudo, virado de cara para baixo e costa a mostrar a tatuagem que tomava toda carne, uma linda fênix de olhos vivos e asas abertas, colorida.

Poslúdio

Havia uma marca no pescoço. Fotógrafos. Curiosos. Todos querendo saber. Um furo perfeito, profundo e o sangue escorrido. O corpo deitado, estirado no chão. Morto. Nu. Tatuado. Imóvel. E nenhuma explicação.

Vinte e quatro anos e as vinte e quatro badaladas da meia noite. Fora encontrado ali, desse jeito enquanto a porta batia ao comando do vento. Garrafas de vinho. Cigarros fumados. Duas taças e uma marcada pelo batom escarlate.

A meia lavada havia enxugado. A pia do banheiro não mais pingava. Na privada o cheiro do desinfetante floral usado na limpeza do banheiro e um pano de prato pendurado na maçaneta da porta. No cesto de roupa suja uma camisa enxovalhada, a calça pendurada no armador e o rádio desligado, a pilha gasta.

As garrafas cheias na geladeira e sobre a pia o saca-rolha mudo, lavado, limpo, polido e ao lado uma prova mínima, esquecida. Um anel surrado, feminino, ali. Seria displicência ou malícia de mexer com a inteligência dos envolvidos?

O corpo exposto, coberto pelo lençol de marcas amareladas. Provas do gozo dos corpos envolvidos? Quantas marcas? Quantos gozos?

As provas postas em sacos, o defunto ensacado e além de olhos curiosos, outros tantos em lágrimas. Lágrimas de despedidas de tantos clientes rodados naquela cama, envolto do mesmo lençol que cobria o corpo tatuado com a fênix, para o lado de cima, em forma de ressurgimento, de não está vencida, mas recomeçada.

E o diagnóstico final: overdose, pico jugular.

Enquanto o assassino que era eu observava tudo de longe sem dizer nada. Eu, conhecedor de todos os fatos, maculado na alma por aquela fênix metade que se completava em mim, que deixava o local carregado por outras mãos enquanto nossos olhos se reencontravam.