RUA DO CÉU

Lembro-me de uma propaganda veiculada na TV de uma marca famosa de uísque. Nela o protagonista era Roberto Baggio, jogador italiano de futebol que disputou a final da Copa do Mundo nos Estados Unidos contra o Brasil e perdeu o último pênalti.

Agora imagina só, você cobrar o último pênalti do jogo e se perdesse daria o título à outra equipe, ainda mais em uma Copa, evento transmitido para o mundo inteiro e que acontece apenas de quatro em quatro anos. É de deprimir a carreira de qualquer atleta. Talvez esta derrota pudesse desencorajá-lo a ponto de nunca mais bater um pênalti em sua vida, ou até mesmo continuar jogando futebol.

Acontece que esta propaganda mostra após alguns anos, Roberto Baggio cobrando outro pênalti decisivo para seu time. Desta vez ele marcou. Então, no final aparece o slogan da fabricante do uísque: “Keep Walking” traduzindo – “Continue andando”, ou seja, levante a cabeça, vai em frente, que a vida se encarrega de outras oportunidades.

Todas as sextas por volta das 23 horas saíamos nas ruas do centro da cidade de São Paulo para entregar sopa, roupas, cobertores e claro uma palavra amiga aos mendigos. Nosso grupo tinha aproximadamente seis pessoas. Não falhávamos uma. Meu companheiro mais chegado e disposto de todos era Ivânio. Nada o impedia, nem mesmo a chuva ou o frio. Juntos, aprendemos muito durante estes seis meses de propósito.

É impressionante o que acontece com as pessoas. Da noite pro dia, nossa vida pode mudar do vinho pra água. Um dia temos tudo do bom e do melhor, com direito a regalias e sobras e no outro, não temos nada, nem teto ou nem comida.

Nesta jornada, encontramos pessoas de todos os tipos. Numa noite conhecemos um homem, que dizia ter sido maestro de uma orquestra no exterior. Chegou a morar na França e ter uma vida muito boa, mas um amor não correspondido tirou toda sua alegria seu prazer de viver, e gastou todo o seu dinheiro. Acabou a motivação, deixando os problemas e as dores do coração derrotar e dominar sua vida, indo morar na rua, depois de receber porta na cara dos seus parentes. Sem dinheiro, sem condições de recomeçar uma vida, um novo relacionamento, não se deu uma chance de tentar encontrar um novo amor, uma nova alegria na vida. Entregou-se.

Outro caso interessante foi o de uma mulher que aparentava seus trinta e poucos anos e que estava grávida. Não sei dizer qual o motivo de sua reação, mas nossa presença a incomodou demais, chegou a tal ponto de gritar na rua para nossa retirada, senão não pararia de bater em sua barriga. Isto mesmo, ela batia em sua própria barriga com um pedaço de madeira, gritando: - Saiam daqui, senão eu mato esta criança.

Pra mim, esta cena foi a mais forte deste trabalho. Claro que imediatamente, sem outra solução, tivemos que ir embora.

Agora este próximo caso que vou contar é especial.

Estávamos parados com a Kombi (era uma Kombi que meu pai tem até hoje, seu apelido é Banana de Pijama, por ser metade amarela, metade branca, daquelas antigas, ano setenta e cinco modelo com dois pára-brisas) cheia de roupas e um caldeirão de sopa em frente à Catedral da Sé quando se aproximou um rapaz muito jovem chamado Carlos Eduardo, quase trinta anos de idade, enrolado num cobertor sujo, velho e mal cheiroso, segurando um pedaço de pão com carne moída que tinha recebido algumas horas atrás por outro grupo de apoio.

Demos sopa, um novo cobertor e oramos por ele.

Começamos a conversar e nos relatou o que o levou a morar na rua. Foi quando meu amigo Ivânio pediu para cantar uma música, que dizia assim:

Quero que valorize o que você tem,

Você é um ser, você é alguém,

Tão importante para Deus.

Nada de ficar sofrendo angústia e dor,

Neste seu complexo inferior,

Dizendo as vezes que não é ninguém.

Eu venho falar do valor que você tem,

Eu venho falar do valor que você tem.

Carlos Eduardo começou a chorar sem parar e disse que fazia mais de um ano que tinha saído de casa e que seus pais nem sabiam mais se estava vivo. Disse que tinha se arrependido profundamente de tudo o que tinha feito a seus pais, das brigas, discussões, roubos, confusões e outras coisas que o motivou a sair de casa.

Foi quando eu tomei a palavra e disse que se ele me autorizasse, iria até a casa dos seus pais para convencê-los a recebê-lo de volta. Olhou-me assustado dizendo: - Meus pais nunca me aceitarão de volta! Eu aprontei muito e tem outra, nem sabes que estou vivo.

- Por isto que devemos visitá-los - disse-lhe – Imagina o quanto estão sofrendo sem saber onde está? Talvez pensem que morreu, mas talvez estejam te esperando. Fala onde você mora que vou conversar com eles amanhã. Caso o aceitem de volta, domingo estaremos aqui para te buscar e levar pra casa.

- O que? – respondeu ele, já abrindo um sorriso de esperança em seu rosto – eu moro longe daqui, lá no Jabaquara. É muito longe, vocês não vão.

- Carlos Eduardo, passa o seu endereço que eu vou amanhã – falei com firmeza – Qual o nome da sua rua?

- Rua do Céu, número tal – informou.

Preciso revelar uma coisa: esta rua na verdade era chamada pelos vizinhos de bairro de rua do “Céu da boca da onça”, localizada no Jabaquara, Zona Sul. Era perigoso passar por aquela rua até mesmo pela manhã.

Engoli seco, pois já conhecia o local. Olhei para o Ivânio que na hora topou o desafio.

Noutro dia, estávamos na Rua do Céu (da boca da onça) em frente ao número informado pelo Carlos Eduardo. Era uma casa de portão e muros baixos, um quintal pequeno, suficiente para um veículo e com uma porta antiga que dava acesso adentro da residência, daquelas que tem uma janelinha de vidro para identificar os visitantes.

Assim que nos atendeu, fui logo falando:

- Senhor Guedes, meu nome é Sandro e meu amigo chama-se Ivânio. Fazemos um trabalho todas as sextas no centro de São Paulo, levando sopa e comida para moradores de rua e lá encontramos seu filho Carlos Eduardo.

Imediatamente o velho fechou a janelinha na nossa cara.

Ivânio ficou mudo me olhando com cara de espanto sem entender nada, mas assustado com a reação dele.

Respirei fundo e continuei agora em voz alta, para me ouvir dentro de sua casa: - Senhor Guedes, seu filho Carlos Eduardo está vivo, foi ele quem nos deu o endereço para procurá-lo, quer voltar para casa, mas acredita que o senhor não o aceitaria de volta. Por favor, abra a porta, precisamos conversar. Ele precisa voltar senhor Guedes, abra, por favor.

Após alguns segundo em silêncio, ouvi o barulho do molho de chaves. Abriu a porta com os olhos todos vermelhos e lágrimas no olhar, disse-me:

- Ahhh meu Deus, eu nem sabia que meu filho estava vivo, é claro que eu quero que ele volte pra casa. Entrem por favor, quero saber onde está meu filho.

Entramos e tivemos uma longa conversa com o Senhor Guedes que segurava um lenço para enxugar suas lágrimas que não pararam de molhar seu rosto. Vimos fotos do Carlos Eduardo pequeno brincando com seus amigos e primos. Tomamos um café forte no final.

Pensei comigo: Pude sentir enquanto narrava às desavenças o tamanho de sua dor como pai. O filho fugiu de casa para morar embaixo de pontes e se drogar o dia inteiro nas ruas e sua esposa também foi embora para o interior morar com uma irmã, pois não agüentava viver naquela casa vendo o quarto e as coisas do filho desaparecido, fazia mais de três meses que não a via. Quanto questionamento este velho fez a Deus? Suas noites de sono deveriam ser muito longas, solitárias e geladas. Deve ter levantado mais de mil vezes durante este último ano, pensando, sofrendo e imaginando mais mil coisas.

Um senhor com quase setenta anos de idade, chegando ao final de sua jornada. Reflita.

Deixei o número do meu telefone para mantermos contato e saímos de lá com o compromisso de trazermos seu filho no outro dia.

Domingo eu e meu incansável parceiro voltamos ao centro da cidade procurar Carlos Eduardo. Rodamos todos os locais onde se abrigavam e nada de encontrá-lo. O dia foi passando e nem sinal.

E agora? E se não conseguíssemos achá-lo? O que falaríamos para o Senhor Guedes? Ele iria pensar que novamente ele preferiu continuar morando na rua.

Fim de domingo, nossa expectativa a partir daquele momento seria aguardar a próxima sexta-feira com a esperança de achá-lo.

Antes mesmo que chegasse o dia de voltar para as ruas, recebi uma ligação à noite. Era a mãe do Carlos Eduardo. Meu coração gelou, pensei comigo: - Matei o velho. Não encontramos mais o rapaz, dei uma chama de esperança ao velho, que bateu as botas ou suicidou-se de desgosto de tanto sofrimento pela expectativa.

Ao atender foi logo dizendo: - Que Deus te abençoe meu filho, vou orar todos os dias para que sua vida seja repleta de vitórias, porque Ele te usou para transformar nossas vidas, o Carlos Eduardo voltou pra casa. Meu filho está de volta, me ligou todo feliz e disse que foi por sua causa.

Você acha que me contive meus amigos, na mesma hora comecei a chorar juntamente com ela ao telefone agradecendo a Deus.

Disse-me ainda: - Estou de malas prontas para São Paulo, voltar pra casa reconstruir minha família e quero que nos visite. Preciso te conhecer meu filho.

Claro que depois desta ótima notícia, fiz questão de voltar com meu amigo Ivânio à casa do Carlos Eduardo para conhecer sua mãe e dar um abraço em seu pai.

Carlos Eduardo internou-se por conta própria em uma clínica de recuperação de viciados em drogas no Estado do Mato Grosso do Sul e após alguns meses de tratamento, tornou-se instrutor desta mesma Clínica.

Todos nós seres humanos enfrentamos dificuldades em nossa vida, obstáculos e ondas que querem nos fazer recuar. Uns suportam mais, outros menos, não importa.

Não importa se foi um pênalti ou se foi à perda de um filho, lembre-se disto:

Keep Walking - Continue andando.

SANDRIBAS
Enviado por SANDRIBAS em 25/08/2010
Reeditado em 26/08/2010
Código do texto: T2459477