Da inutilidade das palavras certas

Ele, um dedicado e apaixonado professor de Filosofia, como Mathieu Delormé, e que coincidentemente também acreditava estar na “Idade da Razão”, o que o aproximava mais uma vez do complexo e um tanto atormentado personagem de Sartre. Embora, aqui abaixo da Linha do Equador – nesta república das bananas – as questões existencialistas se confundem com as necessidades da existência – que me perdoem o trocadilho – e isso o empurrou para a Região dos Lagos em busca de melhores escolas e salários.

Rotina cansativa: aulas e mais aulas; provas sem fim para corrigir, leituras acumuladas a embalar o sonho de continuar a vida acadêmica e a necessidade de preparar aulas que fossem condizentes com os exorbitantes salários que os donos de escola sempre acreditam pagar. Somava-se isso a urgência de manter a pequeníssima casa alugada com tudo no lugar, a geladeira minimamente abastecida e outras demandas da chata vida de adulto. Tarefa que se apresentava ainda mais heróica para alguém que sempre foi paparicado pelos pais.

Numa das perturbadoras noites em que equacionava tudo que precisava fazer pensou consigo: “preciso arrumar uma diarista”.

Passaram-se duas semanas, e naquela modorrenta tarde de quarta, tempo que deixou um pouco livre para não dar conta de tudo que precisava fazer, ouviu a campainha tocar. Lá pelo quarto toque, depois da tentativa frustrada de acabar o parágrafo do texto sobre o qual estava curiosamente debruçado, foi até a janela e viu o rosto desconhecido de uma garota que aparentava vinte e poucos anos, de olhos vivos e claros, que de relance não sabia se azuis ou verdes, cabelos levemente cacheados muito escuros, não usava nenhum tipo de maquiagem e estava vestida com tal simplicidade que parecia, mesmo, propositalmente desleixada.

O professor pensou no instante em que caminhava até o portão: “quem será essa versão praiana da Norah Jones?”. Como se tivesse ouvido sua pergunta interna, ou na normal necessidade de se apresentar e falar do propósito de bater numa porta desconhecida, disse ela com voz suave

- Oi, meu nome é Sofia, vim aqui por causa de um anúncio que o senhor deixou de que precisava de uma empregada.

- Primeiramente não me chame de senhor, para alguém que estás prestes a chegar na “crise da meia idade” isso pode ser uma temeridade!

Sofia não esboçou nenhuma reação frente à tentativa do nosso Mathieu ser ironicamente engraçadinho. Não teria entendido o sarcasmo de sua fala? Seja como for, continuou ela:

- Tudo bem então, você precisa limpar a casa e eu posso fazer isso.

Saíram então do portão e entraram na pequena e absolutamente zoneada casa provisória do professor, que até se sentiu um pouco envergonhado com a bagunça. Enquanto dava um sem-número de instruções sobre o que esperava que Sofia fizesse para minimizar o sentimento de impotência e solidão por estar em um lugar bem diferente de seu habitat, a diarista pensava consigo: “mesmo fazendo tanta força para mostrar que sabe tudo que quer, até que o professor não parece ser tão chato assim... É verdade que ele tem uma carinha de nerd, mas numa dessas noites em que não se arruma nada ...”. Vinte minutos depois de um monólogo sobre limpeza, geladeira e compras, despediram-se de modo quase indiferente:

- Então estamos combinados! O melhor dia para você limpar essa zona é quinta, estou o dia inteiro fora e você vai ficar mais à vontade. Tem um bloquinho encima da mesa para escrever o que preciso comprar ou eventuais recados. Acho que vai dar tudo certo Sofia até a próxima semana.

Sofia despediu-se com meias palavras e vagarosamente, com um andar felino, se encaminhou para o portão de saída. Com isso, o professor se viu forçado a pensar mais uma vez sobre aquela moça ainda desconhecida: “que lugar escroto, uma garota tão bonitinha, com várias perspectivas pela frente, trabalhando como diarista”. Voltou, em seguida, sua atenção para a leitura, onde permaneceu absorto, aproveitando apaixonado o pouco tempo livre de que dispunha, lastimando por cada hora passada, em função da necessidade de no dia seguinte voltar a falar de Filosofia para um público que normalmente não se interessava tanto em ouvir.

Ao regressar na outra quinta-feira para casa surpreendeu-se com a limpeza e o perfume que por lá fizera morada. Colchas e lençóis devidamente dobrados, livros ordenados e empilhados, embora sem nenhum tipo de separação que denotasse maior intimidade com aquele tipo específico de leitura. Antes de fantasiar sobre a hipótese de alguma fada ou anjo ter resolvido fazer faxina, lembrou-se do que havia acertado na semana anterior. Fato confirmado por conta de um bilhete que viu sobre a mesa

Oi professor. Espero ter limpado direitinho. Acho que precisa comprar chocolate não vi aqui e você tem cara de quem gosta está faltando também sabão em pó.

Beijos Sofia

Ela de fato tinha acertado! Ele adorava chocolate, mas afinal, quem não gosta? Lembrou-se que sua provisão da maravilhosa iguaria havia acabado e correu ao supermercado para comprar os itens que faltavam. Ao retornar deixou também um bilhete como resposta, relatando que adorou a limpeza e o cheiro novo e gostoso de sua casa, não deixando de sublinhar também a beleza da letra e o capricho de Sofia.

Na semana seguinte não havia motivo para surpresas, a casa estaria mais uma vez limpa e perfumada e tudo dentro de alguma ordem, que decerto era bem melhor que a de um mês atrás, quando ainda não existia Sofia. E tudo transcorreu nessa normalidade... Exceto pela existência de mais um bilhete:

Oi professor. Tem brigadeiro na geladeira espero q goste. O q não tiver bom é só falar q tento melhorar. Beijos Sofia.

Iniciativa nobre e festejada essa de fazer um prato de brigadeiro! Enquanto saboreava vorazmente o saboroso doce, escrevia mais um bilhete de agradecimento. Este quase uma carta, em que rasgava elogios para a dedicada diarista.

Outros bilhetes se sucederam. As temáticas passaram a variar da atualização da dispensa até algumas “pessoalidades” como o time de futebol, o tipo de música preferida, o que se fez de bom ou de ruim no fim de semana... As folhas do bloquinho começavam a rarear, a medida em que aumentava o conhecimento em torno do universo particular e comum do outro, envolta ainda de maior e inesgotável curiosidade para se saber mais.

Em mais uma noite de quinta em que já corria e ansiava por chegar logo em casa para ver se havia mais um bilhete o professor, desta vez, se viu um tanto frustrado com o que tinha diante dos olhos:

Querido professor. Vou chegar atrazada e sair mais cedo na próxima semana porque tenho um problema pessoal para mim resolver. Talvez consiga esplicar melhor para vc. Beijos Sofia.

O professor se flagrou sentindo um calor incomum na face, os olhos faiscavam, não conseguia explicar ao certo o que sentia, mas era definitivamente algo estranho. Desta vez não tinha diante dele, como concluiu amargamente, propriamente um bilhete em que se insinuasse a possibilidade de uma resposta. Era muito mais uma notificação. Sentia-se um tanto perturbado e desconfiava que não seria exatamente pela falta da limpeza total da casa que se encontrava naquele estado. Temeu estar com ciúmes e se sentiu absolutamente ridículo com isso. “Afinal, que raio de problema pessoal é esse?” Pensou ensimesmado.

Tratou o escrito de fato como uma notificação, pegou uma caneta vermelha e se limitou arrogantemente a corrigir os erros de português existentes e colocou um “OK” enorme que ocupava todo o espaço do papel para não deixar dúvidas de que tomou ciência do ocorrido.

Na outra semana ao apontar em sua rua, já com velocidade completamente imprópria e imprudente, especialmente para aquela noite chuvosa, ao mirar os faróis próximos do portão de entrada reparou que alguém de pé esperava em frente da casa, a despeito daquele péssimo tempo.

Ao aproximar-se reconheceu Sofia, que trajava um limpo vestido estampado de cores muito vivas, como se quisesse desafiar aquela noite cinza. Trazia os cabelos soltos e completamente encharcados e tinha se maquiado de modo que seria impossível não notar a intenção de ter pintado o belo rosto. Era nítido que havia se produzido para aquele encontro, embora seu semblante fosse de indelével tristeza. Ao ver aquele belo e atraente misto de formosura e melancolia o professor ficou mudo, principalmente porque foi Sofia que se adiantou, sem conseguir conter o choro:

- Quem você pensa que é? Só porque é professor acha que pode sair por aí corrigindo as pessoas e fazendo com que elas se sintam burras?!

Surpreso e sem tempo de formular resposta satisfatória o professor permanecia imóvel enquanto continuava ela:

- Eu não sou burra! E você não imagina o mal que me fez! O quanto me senti inferior por causa daquela forma idiota que você respondeu meu bilhete ... E o pior, mostrando que não dá a mínima para mim e para os meus problemas.

Neste momento o jovem conseguiu perceber que toda aquela mágoa de aparência tola e infundada era feita da mesma matéria de seu ciúme, à primeira vista igualmente tolo e infundado. Sem uma só palavra segurou a garota com firmeza, passou a mão carinhosamente em seu rosto para limpar-lhe as lágrimas. O longo e impactante beijo surgiu do nada, algo inexplicável e vertiginoso.

Naquela longa e prazerosa noite pouco importou uma ortografia exata ou uma fala afeita à norma culta; se existia apenas Kant e nada mais; se a aquisição do conhecimento se dá de forma imanente ou empírica. O que ditava as aproximações e convergências era a língua fácil, quase universal, do coração pulsando no ritmo frenético do êxtase, da troca intensa de fluídos, do odor que fica e não se esquece da pele molhada. E muitas dessas noites continuam existindo entre o “professor-filósofo” e a bela e sensível faxineira, que agora anda sonhando com o vestibular, a despeito de algumas diferenças que progressivamente tornam-se cada vez mais irrelevantes.

Dé Garfield
Enviado por Dé Garfield em 02/06/2010
Código do texto: T2296009