BALEIAS
 

            Não sou descendente direto dos Fenícios, mas, potencialmente sim. O homem mais contemporâneo deve muito aqueles hábeis navegadores, oriundos de entre o Líbano e o Mediterrâneo, uma pequena faixa de terra que por forças das circunstâncias, os fizeram ir além das fronteiras do mar de seus domínios, chegando a contornarem a África mesmo antes do brilhante navegador Vasco da Gama.

            Nasci no litoral fluminense, num gigantesco estaleiro muito moderno. Levei alguns anos para ficar pronto. Uma gestação a ferro e fogo. No dia de meu batizado foi uma festa total, quebraram até uma garrafa de champagne importado, um certo “De Greville Brut” em meu peito viril! Eu era o produto final de cuidadosos e sofisticados dias de trabalho e planejamento. A tecnologia estava presente em toda a minha extensão. Eu estava realizado. Do projeto de desenho ao mar aberto. E assim abracei o mar com meu imenso peso de metal.

            Minha missão nesse mundo de água exigia perícia e sangue frio. Os homens que estavam comigo nesse trabalho não podiam errar, pois um erro profissional levaria a perda de vários milhares de dólares disfarçados em reais. Eu era a arma utilizada por esse predador que se auto intitula HOMO SAPIENS. Às vezes não conseguia entender por que o homem caçava pelo simples fato de matar em nome da ambição. E a presa nesse momento era um animal dócil, mamífero igual a ele. Morto sem nenhuma chance nem piedade, quando tentam dar continuidade à sua espécie. As BALEIAS. Eu, um navio caçador de baleias. Uma baleeira que cortando as quentes águas dos trópicos, carrega em cima de si o arpão mortífero para essas indefesas criaturas.

            Minha jornada de trabalho começa bem cedo, o nosso astro de quinta grandeza sequer mostra ainda seus primeiros raios dourados de sol. A barra do novo amanhecer é tudo que se vê nesta alvorada onde a vontade de matar é tudo que se sente. Uns alegam sobrevivência, outros a simples necessidade de ocupação mascarada pela palavra trabalho. Na verdade todos mentem em nome do capitalismo comercial e selvagem por excelência, porque o dólar vindo do Japão e outros fala mais alto que a própria preservação da espécie. Aliás, falar da preservação da baleia aqui no Brasil, já é algo que há muito tempo não é levado a sério pelos governantes...

            De repente alguém grita que uma baleia fora avistada. Mais que depressa meus motores são acionados com força total de meus cavalos. Ao longe já se avista o jorro d’água subir verticalmente, dando à certeza de que seja realmente uma baleia. Tudo pronto na proa, o arpão em posição, o artilheiro com o dedo impaciente no gatilho e a baleia nervosa nada apressadamente à minha frente, como se adivinhando a maldade daquele monstro de metal que a persegue e o conseqüente perigo que corre. A perseguição é travada palmo a palmo d’água. Cada vez mais me aproximo dela que cansada e abatida pelos potentes motores que me impulsionam, se entrega ao carrasco. Aproximam-lhe cada vez mais da morte. De súbito o artilheiro dispara o arpão que com a violência do impacto, dilacera a carne do indefeso animal que se debate por entre gemidos e sangue, A corda é tão resistente quanto os grupos comerciais que defendem esse tipo de atrocidade. As suas forças se esgotam, e então ela é trazida para mais perto de mim e sangrada mais uma vez pelas mãos hábeis dos homens do frigorífico. Uma e outra mais são avistadas, e mais outras. Tudo se repete com o final de morte para todas elas. Volto para casa com o imenso peso morto que carrego nas minhas costas. Na praia são arrastadas todas até o frigorífico central onde são completamente retalhadas e aproveitadas até as suas vísceras. A maior parte de toda a carne vai para o Japão.

            Todos os dias a mesma coisa. Tudo está acabando, todas elas estão desaparecendo, entrando em extinção. Não serão os primeiros e nem os últimos a sumirem por vontade do homem, desse HOMO SAPIENS. E a caça desenfreada continua. Absolutamente ilógica e ridícula. O homem, o maior racional entre os irracionais. Pensar racionalmente é privilégio de bem poucos. Eu, uma máquina, estou decepcionado com o bicho homem. É bem verdade que ele criou-me com a finalidade explícita de me usar e utilizar para seus fins ilícitos frente à natureza, mas confesso que estou decepcionado. E acredito que muitos deles também o estão...
 
 

 
Este texto faz parte da coletânea “Literatura Brasileira”, Livro editado pela Shogun Editora e Arte, Rio de Janeiro/1990.

Ricardo Mascarenhas
Enviado por Ricardo Mascarenhas em 24/11/2009
Reeditado em 07/11/2021
Código do texto: T1942478
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.