ESSAS CRIANÇAS !!!

Mirtres, com cinco anos e Chiquinho, com três, apesar de serem irmãos de sangue, desde a mais tenra meninice foram crianças muito diferentes em gênio e hábitos. Mas os dois, sendo na época os mais novos da família de nove irmãos, foram dedicados à mãe. Tanto a amavam e respeitavam que nenhuma lágrima lhe seriam capazes de produzir. Mas, enquanto a Mirtres era um coraçãozinho de ouro – meiga, amorosa e mansa – o Chiquinho, que não tinha na família outro menino para suas brincadeiras, era travesso e pronto para enfrentar qualquer situação. Aconteceu, por esse motivo, que seguia à risca o que os irmãos mais velhos faziam e ensinavam. Aprendeu cedo a armar arapucas e laços para captura de pássaros. Atirar com o bodoque era sua especialidade, pois o aprendera desde aquela idade.

Os pais agricultores moravam no interior. Era uma região em que, ao par das multiculturas, muito vinho era produzido para o consumo próprio. O plantio de parreiras era um hábito que os italianos da região – e os havia muitos – levavam por tradição. Não havendo nas terras dos pais dos meninos senão um ínfimo parreiral para degustar alguns cachos, os subprodutos da uva eram adquiridos junto aos vizinhos. Na vindima, por exemplo, quando as primeiras pipas recebiam os ingredientes para o fabrico do vinho – e isso era um ritual quase sagrado – os que não o fabricavam iam até eles saborear o “vinho doce”. O vinho doce é assim chamado quando o suco apenas começa a fermentar. Ele quase está isento de teor alcoólico mas, sendo tomado com o estômago vazio ou caso se abuse da degustação, ele produz tontura e sonolência naqueles não acostumados a essa prática.

Era época da vindima e a acorrência às pipas era uma constante.

- Mirtres e Chiquinho vocês vão lá no seu Antônio buscar um garrafão e um litro de vinho doce para nós tomarmos, disse o pai certa manhã aos pimpolhos.

Os dois mais que depressa passaram a mão nas vasilhas e foram. Seu Antônio, que ainda não tinha netos, apesar de seus sessenta e vários anos e a casa cheia de filhos e filhas adultas, recebeu os dois com o prazer que sempre lhe produziam as visitas das crianças dos vizinhos.

- Seu Antônio, o pai mandou buscar vinho doce.

- Vamos lá para o porão. O vinho está mesmo no ponto e neste ano a uva está muito boa. Digam para o papai e a mamãe virem uma noite dessas para comer uma polenta regada a vinho doce.

- Vamos dizer, sim – disseram mais que depressa os pequenos, já antegozando que acompanhariam os pais nessa visita.

Ninguém saía da casa do fabricante de vinhos sem que lhe fosse oferecido ao menos uma caneca desse vinho em estágio inicial, que seu produtor considerava inofensivo até para crianças. Ele mesmo e sua família o consumiam por água pois estavam acostumados e nenhum mal lhes acontecia. Assim seu Antônio ofereceu a cada uma das crianças uma caneca do suco doce da uva.

- Podem tomar, disse ele. Ainda não é vinho. Não faz mal a ninguém.

- É gostoso!!! - disse o Chiquinho, bebendo todo o conteúdo de uma só vez.

Depois de cheios os recipientes, os meninos tomaram o rumo de casa, que distava uns três mil metros costeando o mato. Mal chegaram à estrada que os levaria para casa, propôs o menino:

- Mirtres, vamos destampar o litro e beber um gole cada um?

- Vamos – e ato contínuo subiram o barranco, sentaram-se à sombra de uma grande erveira, desarrolharam o litro e beberam. Seu mal foi que o bom gosto do líquido os traiu. Foi um gole, mais um gole e, assim, o litro foi alternando de boca para boca até que secou.

Os dois, tontinhos da silva, dormiram ali mesmo.

Os pais dos pequenos beberrões já estavam preocupados. Passava do meio dia e nada deles voltarem. E manifestaram suas preocupações um para o outro.

- Certamente ficaram brincando na casa do vizinho. Ele gosta tanto das nossas crianças! Vai ver que levou eles para comer butiá - disse a mãe, para consolo do casal.

- Mas nunca aconteceu eles se demorarem tanto, ponderou o pai.

Tanto se preocuparam que o filho mais velho foi ao encalço dos irmãos para trazê-los para casa. Chegou à casa do italiano e este lhe disse que as crianças haviam saído do seu terreiro já fazia bem umas duas horas. E o rapaz voltou sobre os calcanhares e, no trajeto de volta, nenhuma macega lhe escapou dos olhos. Ao chegar no grande e copado pé de erva mate, já em suas terras, descobriu os dois dormindo ao lado do litro vazio e do garrafão. Tomou-os em seu fortes braços e os conduziu para casa, rindo-se baixinho da façanha do irmãozinho, de quem, certamente, partira a idéia

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 19/09/2009
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