Encontro pela INTERNET

Encontro pela INTERNET

Normando e Gaspar se conheceram pela internet. A empatia, instantânea e recíproca, ganhou a devida força através dos e-mails trocados. Um belo dia marcaram um encontro. Desses ao vivo, em três dimensões. Amizades, quando afloram, culminam mesmo na forma da flor, e seu caminho até lá é o caminho do rio, correnteza rumo à, correndo pro mar, o mar da amizade.

Ocorre que Normando e Gaspar já avistaram o “Cabo da Boa Esperança”, cada qual por seu ângulo, querendo-se com isso apenas dizer que quem já vislumbrou o Cabo, com certeza já pisoteou o istmo da “Boa Cautela”.

Assim, marcaram o encontro em lugar público, para segurança de ambos, visto que internet não raro vende gato por lagarto, Normando bem podendo supor que Gaspar não fosse Gaspar e sim Inger, uma norueguesa de 1,92 m, ex-campeã mundial de halterofilismo e boxe tailandês, com uma tatuagem na testa escrito “Filha do Demônio” e o curioso hobby de esfaquear suas vítimas no primeiro (e último) encontro.

Em similar raciocínio, Gaspar poderia pressupor que Normando na verdade fosse Sandro, com o porém de que Sandro até 2 meses atrás chamava-se Sandra, tendo com sucesso feito a famigerada operação, que além da troca, elegantemente dizendo, de uma periquita por um pardal, há também a troca do nome, nem que seja uma vogal. Até aí tudo bem, não fosse a imaginação de Gaspar fantasiar que Sandro/a fizesse parte da mesma irmandade da irmã Inger, com iguais inclinações.

Elegeram, pois, um lugar público. A escolha, contudo, tendo em vista os parâmetros da “ Boa Esperança” e da “Boa Cautela”, tergiversou pela península da “Boa Reflexão”, e entre mails e mais mails chegaram num consenso, sintetizado em 4 possíveis locais:

1. Uma Peixaria 2. Um salão de cabeleireiro 3. Um shopping 4. Uma praça.

Induzidos pelo bom senso, se acertaram no quarto item. Foi que, num dia belo, encontraram-se numa praça, redonda, com árvores e bancos. As fotos da internet conferiam com as fisionomias que se depararam, e que já falavam sem palavras a linguagem do coração. E como ambos haviam realizado os devidos estágios nos pontos geográficos aqui descritos, puseram em prática a senha combinada:

Gaspar disse: Lula

Normando disse: Lá

Os dois olharam para o céu e bateram palmas três vezes.

A praça cantarolava, idem os bancos, as árvores e os intelectuais, posto que e em tempo, Normando e Gaspar são intelectuais.

Findos os preâmbulos de um primeiro encontro entre amigos que eletronicamente se conheceram, põem-se os dois, com a justa educação que intelectuais e já amigos ostentam, a desfiar seus atributos de cultura.

Diz Gaspar: “Todos os peixes possuem um sentido para o qual não temos paralelo: ao longo dos flancos, com ramificações sobre a cabeça, apresentam uma linha porosa, de textura um pouco diferente do resto do corpo, ligada por um canal logo abaixo da superfície. É conhecido como sistema da linha lateral, e com ele o peixe consegue perceber qualquer diferença na pressão da água.. “

David Attenborough - Londres, 1979.

Diz Normando: “Anatômica e fisiologicamente o homem é apenas um mamífero e, nem sequer, um mamífero altamente especializado. Até seu cérebro e seu sistema nervoso são apenas ligeiramente mais complexos, ao passo que as qualidades psicológicas que lhe deram sua posição única parecem diferir das dos outros mamíferos, mais em grau que em natureza. A não ser que a ciência toda esteja errada, não somos anjos decaídos, mas animais aperfeiçoados”

Ralph Linton, Antropólogo, USA, 1936.

Tão riquíssimo entretenimento, enquanto forma e conteúdo, estendeu-se por horas a fio, e o saber inigualável, incomparável e insofismável calou árvores e pássaros, todos entretidos na monumental conversa. Gaspar estava mesmo se divertindo amiúde e Normando idem, embora Gaspar, naquele átimo de segundo sentisse o pontiagudo desejo de abrir o coração, de falar outras coisas, as coisas da experiência vivida, os diamantes obrigatórios na joalheria da amizade.

Gaspar, por exemplo, gostaria de contar para o novo amigo, seus feitos de outrora, quantos gols perdera e quantos fizera desde a aurora da sua vida, pois as amizades a isso também se prestam, à tênues confissões, à delicadas percepções e à soma das lições. No caso do Gaspar era gol mesmo, mas tinha medo de contar e Normando não acreditar.

- Acreditar no que? - diria Normando, caso Gaspar adentrasse no assunto.

- Que na seleção de 70 usei a camisa 10.

Muito além de toda e qualquer verdade que possa conter essa crônica, o que sempre permanecerá em destaque é a imprevisibilidade do ser humano. Pelo menos em certas instâncias. Aconteceu que Gaspar acabou desabafando, sem se importar com as conseqüências. Algumas coisas tem data e hora certa para acontecer. E obedecem determinada lógica. Gaspar e Normando se conheceram num chat literário chamado “Moinho dos que Acreditam”. Pois crentes são. O motivo maior que os levou ao banco daquela praça embutia motivos de igual monta. A amizade e as coisas relativas à ela. Gaspar precisava desabafar.

Normando olhou-o com gratidão e respeito. Depois disse:

- Então a operação com você deu certo, porque pro Michael Jáquison...

- Psiu, psiu, fale baixo... – e Gaspar olhava para os lados – não é operação, são umas pílulas, mas as pílulas que o Michael comprou eram paraguaias...

Gaspar sentia-se aliviado, um novo homem, um novo horizonte à sua frente, achara finalmente alguém que pudesse confiar. O sol brilhava com nova intensidade naquela hora.

Normando, parcialmente em êxtase pela revelação do amigo e pela confiança nele depositada, e parcialmente em êxtase pois também tinha seus segredos e inacreditáveis segredos, mas diferente de Gaspar, que arriscou contar para as 18 esposas e todas disseram: te afasta daqui, mentiroso!, Normando nunca abrira a boca, guardara tudo em silêncio e, perante o suntuoso ensejo ali apresentado, contou sua história.

Normando não era brasileiro, era austro-italiano. Sim, existiam diversos gêneros de austros, desde o austro-húngaro, o mais comum, até o austro-afro, o austro-hindu, o austro-nipo, assim por diante. Enquanto italiano, teve um esplêndido emprego numa pequenina “cidade” próxima de Roma, mas apesar do salário ser uma grandeza, o obrigavam a andar todo paramentado e a falar latim. Nessa época atendia pelo nome de “Paulo VI”.

Gaspar, boquiaberto, saíra do banco e preparava-se para ajoelhar, sendo de imediato repreendido pelo amigo.

- Não faça isso, por favor, me traz péssimas recordações.

Prosseguindo seu relato, já que nesse andamento de raciocínio, o que há muito está trancafiado no peito, quando sai, saibam, qualquer interrupção pode ser daninha. Normando aborrecera-se em demasia com os paramentos e o latim, simulou a própria morte pagando um impostor, já que o salário como se disse era um primor, trasladou-se para outra região, cuja língua também conhecia.

- A Áustria!! – exclamou Gaspar, ao que Normando benevolentemente sorriu face à espantosa inteligência do amigo.

- E na Áustria - continuou Normando - tive de arrumar outro emprego, tentava lecionar latim para os austríacos, embora poucos se interessassem pela língua falecida mas, havia uma novidade na época denominada Formula 1. E eu tinha um cãozinho chamado Nikki, sabe? Um basset. Eu não sabia dirigir na época, mas meu único aluno de latim...

Gaspar estava atônito. Então Normando se chamava Lauda e ...

- Lauda – repetiu Normando, olhando severamente para o amigo ao mesmo tempo que acenava para duas velhinhas que passavam – uma lauda jornalística tem um número de toques diferentes de uma lauda literária, sr. Gaspar...

As velhinhas passaram, a preciosa inteligência de Gaspar deu sinais de vida e aquilo que o coração sente os olhos transmitem, e entre olhares, pois, se entenderam. O fruto de tal compreensão foi o sussurro de ambas as partes, pois as partes eram humanas e a curiosidade integra o conjunto de atributos dos humanos.

- Porque você abandonou o futebol? – sussurrou Normando, ávido de respostas.

- Até que era legal – sussurrou Gaspar – mas aquele negócio do vestiário, toda vez, um cheiro insuportável...depois, eu tinha um dinheirinho guardado na poupança, deu pra pagar um impostor, pago até hoje...

Gaspar queria falar mais, pois mais epopéias tinha para compartilhar, mas o azul do céu começava a fazer suas primeiras reverências ao escuro da noite, Normando também deu-se conta do adiantado da hora, arrematou que também ele gastava uma fortuna com o impostor e daí, dando um suspiro, tirou do bolso um pequeno embrulho.

Amizades são cumplicidades que se estabelecem, pois todos precisamos de cúmplices. E o amigo verdadeiro tem, às vezes, a sagrada obrigação de orientar, sobretudo quando vê um ente querido trilhando um caminho errado. Porque a vida é assim. Não raro tropeçamos, mas tropeçamos em nós mesmos, não nos outros. E os outros nos apontam a direção certa.

- Que maravilha! – exclamou Gaspar ao desembrulhar o presente.

Antes de se conhecerem pessoalmente, na fase dos e-mails, Gaspar dissera ao amigo que estava tendo aulas de violão, que inclusive tinha feito uma gravação, e que naquele e-mail tomara a liberdade de mandar , em arquivo anexo, sua performance ao referido instrumento. Depois de ouvir e de muito pensar, considerando inclusive a cautela necessária – que deve ter dois predicados – não ferir os sentimentos do próximo e ao mesmo tempo tentar re-orientar, Normando comprou o presente. Era um apito.

- Já que gostas tanto de música – falou Normando – pensei que seria bom para ti conhecer novos instrumentos.

Gaspar estava quase às lagrimas de tanta emoção.

- Você acha que consigo tocar “Garota de Ipanema” com este apito?

- Consegue – mentiu Normando, sábio homem, sabendo que pequenas mentiras só visam a preservação.

Em ambos os lados da praça, porque mesmo redonda uma praça pode ter lados, o lado norte e o lado sul, por exemplo, estacionaram, quase que ao mesmo tempo, duas limusines.

- É sua? – perguntaram-se, quase ao mesmo tempo, embora cada um estivesse olhando para um lado. Desnecessário dizer que homens desse calibre desconhecem os termos “carro popular” ou “transporte público”.

- Olha, também trouxe um presente para você - disse Gaspar – espere que vou até o carro buscar.

Dois minutos depois ele volta com um belo embrulho e entrega ao amigo. Era um livro enorme, pois Gaspar sabia que Normando gostava de livros, com uma capa toda trabalhada em relevo, mas num idioma incompreensível.

- Trata-se da “História do Automobilismo na Caldéia”, escrito em caldeu. Primeira edição. Raríssimo.

Normando ficou pasmo. Há anos ouvira falar desse exemplar, achou que fosse mentira, porque no mundo existem muitos mentirosos, mas ali, naquele instante, porque se em termos atmosféricos já era crepúsculo, em ditames existenciais era a aurora de uma nova amizade, Normando precisou se beliscar, seria um sonho(?), aquele livro era mencionado na Gênese, no Pentateuco e no Apocalipse, supunha-se uma lenda e de repente, através de amigo vindo da web...

Ambos se despediram com a sensação do melhor dos deveres cumpridos no campo das relações entre os homens de boa vontade nesta Terra.

Prometeram-se a manutenção do correio eletrônico e de um próximo encontro. E despediram-se com afeto e respeito.

Normando entrou na limusine e ordenou ao motorista que o levasse imediatamente para casa. Começou a folhear o livro, absolutamente encantado, e agora mais do que ciente de reencarnação é um fato, e que na Caldéia fora um piloto.

Gaspar pediu ao motorista que esperasse um minuto. Depois de vasculhar na carteira achou seu escapulário e nele prendeu o apito. Então apitou, e aquilo fez com que se recordasse do milésimo gol.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 20/05/2008
Reeditado em 17/10/2013
Código do texto: T997993
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