Um Passarinho que Pia

Um Passarinho que Pia

Eram cerca de 3, ou 3 e 15, quando ele desceu na rodoviária de Santa Rita do Passa Quatro. Tinha nas costas uma mochila pequena, melhor dizendo, não se tratava de uma mochila propriamente dita mas de um artefato que antigamente, em São Paulo, chamavam de back-pack. Não sabe o nome disso hoje, porque tem há anos, jamais pensou que usaria algum dia, sobretudo numa viagem como essa.

A pousada se chamava “O Bom Recanto”, modesta porém exalando o principal dos atributos, a limpeza, dessas que a gente não apenas vê como sente, Quarto com luz do dia abundante sem sol incidente. “Perfeito”, pensou, consultando relógio. E tomando a seco um quarto de Paroxetina, remédio receitado por um amigo que não é médico, e que apenas lhe disse: isso é o avô do anti-depressivo, tem gente que se adapta bem. O amigo em questão, palestrante peso pesado em questões relacionadas a Qualidade de Vida, dá palestras inclusive na ONU, não é doutor em medicina embora seja pós-graduado em matemática e letras, curiosa combinação e, tendo ambos antes convivido, por conta de um trabalho, ao ver Caio tremendo do nada, segurando um copo de água, tomou a liberdade, com a sabedoria dos que estudam e a intuição de amigo, de sugerir a tal pílula. E Caio aceitou.

Vinte para as 4, pensou ele, depois de ter ordenado seus pertences e antes de dar uma boa olhada no céu de Santa Rita.

Às 4 em ponto ele estava arrumado, barbeado penteado, sentado no Molly Café, ansioso um pouco, feliz um tanto, deleitado deveras visto que o café situava-se na praça Zequinha de Abreu, infestada de árvores e aves, mais o coreto de um lado e a Igreja da Matriz do outro, quando avistou Devaki, carregando umas pastas amarelas, aquelas que tem elástico nas pontas e o sorriso dele foi maior do que a praça, o dela também, o que por si só constitui um bom começo.

Lucia Dekaki, Deva para os íntimos, o que não era o caso dele, pediu um suco de pitanga e um sanduíche de atum. Ele frisou ao garçom seu desejo: suco de laranja sem gelo e sem açúcar. Deva colocou as pastas numa cadeira vaga, sorveu com vagar e com seus olhos castanhos disse:

- Que honra, a sua visita...

- Honra é ser recebido por você...- devolveu ele, de olho nas árvores.

No fundo se sentia constrangido. Tudo aquilo era impossível, a viagem, o encontro, o e-mail para ela aventando a possibilidade do encontro, mas era uma idéia antiga e dotada de muita intensidade, e estava na hora de concretizar o tal vê-la mais uma vez e agradecer. Nem que fosse lhe oferecendo um suco de pitanga.

- Caio, você é mesmo uma figura, homem, não tenho palavras...- e ela ria, com o mesmo vagar que sorvia o suco, seu riso era um afeto com vogais e melodia.

“Não tenho palavras é ótimo, pensou ele, justamente vindo dela, Lucia Almeida Devaki, a maior escritora do Brasil, que vive em Santa Rita por esporte e é voluntária numa ONG por amor àqueles que não tiveram oportunidade.”

Mais um suco, para dar coragem.

- Há 7 anos atrás eu entrei naquela revista por acaso. Nem vale à pena falar desse acaso. Você era o que?

- Diretora de redação...

- Pois bem, mas havia alguém que decidia, mesmo não sendo da área...

- Era um dos donos...

- E você lutou pelos meus textos, pelas minhas crônicas, eles não teriam prestado atenção se você não tivesse feito isso. E pôxa, você nem me conhecia.

- Mas eu conheço um homem pelo que ele escreve. Mesmo quando ele se esconde atrás das palavras, o que não é o seu caso...- ela sempre sorrindo, uma voz gostosa, quase um cantar – eu fiz o que eu tinha que fazer. Também ganhei com isso, afinal você foi da minha equipe, mas, veja...

“E seus olhos castanhos me metem mais medo que um raio de sol...”, cantarolou ele, mentalmente, esperando o que vinha depois da pausa.

-...veja, retomou ela, há mais de 20 anos, para se dizer o mínimo, eu não acredito nessa história do escritor profissional, do ás das palavras. Por isso saí fora do mercado. Meus livros vendem bem, obrigada, as pessoas gostam do que eu escrevo, ótimo, mas por pouco, Caio, muito pouco mesmo, cláusulas contratuais e coisas afins quase me roubam minha maior paixão: a escrita. O ato de escrever. Para mim isso é, antes de mais nada, um amor, talvez absurdo e doentio mas amor por me colocar em palavras. E eu não acredito em escritores porque acredito que antes deles, por trás deles, em cada um deles, existe o pensador. Aquele ou aquela que pensa, e esse pensar muitas vezes é fruto de um sentir, então estamos falando de sensibilidade e expressão, isso é essência Caio, e eu não vivo sem essência. Tanto a minha, quanto a dos outros. E se eu não vejo a essência no texto, desisto dele. Quando o texto se transforma num desfiar de saber e não de sabedoria, quando a empáfia e o ego superam algo que poderia ser melodioso, que é o que se vê por aí, noventa por cento dos casos, então eu vou beber na fonte daqueles que não se dizem profissionais. Alias, vou te contar uma história sobre isso....

Toque de celular, o dela. Atende e responde, reticente, polida. Como não poderia deixar de ser. Depois torna ao assunto.

- Um amigo meu – diz ela – um violonista lá de São Paulo, veio tocar no lançamento do meu último livro, que aliás eu te mandei um convite...

Caio aquiesceu mudo. Se fossem mais íntimos, teria dito em tom de troça “deveria ter mandado a passagem também”. O lançamento fora no Rio de Janeiro, local que a Devaki admira muito em fotografia mas não se sente bem lá, apesar de lá ter nascido.

Depois se mudou para São Paulo, que ela também não morre de amores, e o produto material do sucesso possibilitou-lhe comprar umas terras em Santa Rita, cuidar de plantas e crianças carentes.

- E o som foi bom?

- O som...? – Deva sorri – ah...tu devaneias hein, Caio...

- Mal de nascença....queria saber que tipo de músico vai no lançamento de um livro teu...o Chico Buarque?

- Olha, ele seria bem recebido, eu, que talvez, passasse mal...Já imaginou – agora ela devaneava e ria – aqueles olhos verdes, mais o violão, cantando, hum, deixa ver, eu pediria para ele, esqueci o nome agora, é assim: “ Você era a mais bonita, das cabrochas desta ala...”

- ”...você era a favorita, onde eu era mestre sala” concluiu Caio, querendo saber sobre os profissionais.

- Ah, sim, mas antes – garçom – veja para mim uma torta de jabuticaba, e para o meu amigo também!

Caio relutou, disse que estava de dieta ou coisa no gênero, mas Deva foi categórica, “vais aceitar, asseverou ela, primeiro porque estou oferecendo, assim é um presente, e presente não se recusa, depois porque estarás me fazendo um favor”.

- Um favor? – ele arqueou as sobrancelhas.

- Pois é...mês passado inaugurei uma modesta fábrica de tortas, um sonho antigo, vamos ver no que é que dá...Mas voltando aos profissionais, meu amigo músico me contou a seguinte história: que um amigo dele lá de São Paulo, super musico, profissional, coisa e tal, guitarrista, tem até uma escola, um belo dia se deparou com um estranho, na porta da escola, um estranho de instrumento em punho, querendo saber de preços de aula, taxa de matricula, horários, e o dono falou: bom, vamos ver em que pé você está, toque aí alguma coisa para mim. Gostou da torta?

- Posso pedir mais uma? É que estou tomando uns medicamentos e não sinto direito o gosto das coisas...- ele deu uma piscada de olho e ela entendeu a piada. Outra torta foi servida.

- Continuando, o estranho, que segundo meu amigo era professor de química num colégio estadual, sacou do instrumento e parou o trânsito. Disse que foi um negócio assim, constrangedor, e que o sujeito na maior humildade, mal vestido, postura encolhida, a auto-piedade personificada, deixou todo mundo estarrecido...

- Ele tava de sacanagem, o tal estranho...

- Primeira coisa que eu pensei – emendou ela – mas história não acaba aí. Primeiro, foi uma reviravolta na vida de ambos, do mestre e do pretenso aluno. Porque o mestre parece que quase jogou o instrumento no lixo, imagine, um cara que acompanha os grandes, que aparece em TV...

- O mestre virou discípulo – atalhou Caio, de boca cheia.

- Exato! – ela exclamou espalmando as mãos – e o novo mestre largou a velha profissão e parece que hoje os dois fazem uma dupla e tanto. Ou seja, aquele que não se intitulava nada, deu uma lição nos titulares...

- É... Delicia de torta, Deva...- Caio lamentou tê-la chamado assim, por não sentir-se no privilegio de. Daí deu de ombros e acrescentou – mas essa história leva a muitos ângulos...

- Como todas...- Lúcia Devaki consultou o relógio. O tempo passava manso naquele encontro, mas passava. A passarinhada fazia um alvoroço em torno de uma grande árvore Pau-Ferro, dois cachorros quase engrossam o alvoroço, não fosse a firmeza de um dos donos, o céu também passava, de uma cor para outra, e o celular da autora volta a tocar. Desta feita tom de regozijo, alguma coisa havia dado certo e alguém, em dado horário, viria buscá-la, embora para Caio isso não tenha ficado claro, já que, por ele, passaria a vida ali, conversando com ela e comendo torta.

- Também tenho uma história – empertigou-se ele na cadeira – o sujeito vem andando pela rua e de repente cai num buraco. O buraco é muito íngreme e ele não consegue sair. Passa um médico, ele exclama: doutor, me ajude! E o médico lhe joga uma receita. Então passa um padre, e ele torna a exclamar: padre, me ajuda! E o padre lhe joga uma oração. Daí aparece um amigo e entra no buraco. Ele exclama, realmente exaltado: você é louco! Porque você fez isso? Agora como vamos sair daqui? E o amigo, muito sereno, apenas diz: calma, eu já estive aqui, eu conheço a saída.

“Pronto” suspirou ele, “falei, agora preciso concluir”. Caio sentia-se como se tivesse acabado de fazer uma prova oral de álgebra avançada, para algum concurso de emprego.

Deva não falava nada, exprimia muito com os olhos um sem tamanho carinho. Passou mesmo pela cabeça dela fazer uma piada do tipo “então achas que eu estive num buraco também, e qual era?”, mas no fundo ela intuía que para Caio era muito importante esse gesto de agradecimento, esse preâmbulo, esse encontro. Talvez uma importância exacerbada, fora da realidade, mas Deva sabia também que o outro não é apenas um fantoche, mas um poço de sentimentos. E eis aí uma questão delicada.

Nisso aparece um belo automóvel azul marinho, e um gajo com tipo de motorista desce e se aproxima da mesa.

- Dona Lúcia, acho que atrasei um pouco porque...

- Oh, não tem problema, quer tomar um café?

Ele agradeceu, fez não com a cabeça e disse que esperaria no carro.

Caio olhou para ela como um cachorro olha para o dono. Sem contar o item importantíssimo desse encontro. O que havia por trás de tudo. Não fora a questão do emprego, não senhor, fora o fato de, graças à ela, ele voltar a ler. Porque há 7 anos atrás, quando ele entrou naquela revista, ele não lia e não escrevia mais nada. E como uma coisa está intimamente relacionada à outra, foi, na recepção, enquanto esperava para ser atendido, pegou uma das revistas e leu um artigo dela. Ele se lembra direitinho da hora, da decoração da sala, da roupa que usava e dos quadros na parede. Ele se lembra porque, naquele instante, pasmo e encantado ao ler o artigo, pensou: então ainda escrevem coisas assim? Ele já estava farto, verdade seja dita, muito em virtude de um momento de vida, mas estava farto dos autores contemporâneos, farto das livrarias e seus chamarizes “Como ser um Big Boss”, “Como matar sua mulher e ser bem sucedido”, ou o inverso, farto da banalidade geral de ver nomes conhecidos associados ao péssimo uso da palavra, chegou até a criar/citar uma frase: “Brasil, declínio do gênio, corrupção do gosto”, até o dia em que, levando seus velhos rabiscos numa revista, leu um texto dela. E que texto! Parecia a soma de todos os cronistas da sua juventude elevados ao cubo numa só pessoa. Uma mulher chamada Lúcia Devaki. Que ainda por cima lhe arranjou um emprego.

Infelizmente ela já havia se levantado, a conta já estava paga, e ele ficou a ver navios com relação a tudo o queria dizer.

Face a face, antes do fraternal abraço, ela assim colocou:

- Caio, eu apenas sigo a lei.

- ?

- A lei que rege tudo isso, Caio, a vida, o cosmo, tudo isso é regido por uma lei, repleta de códigos. E um deles, e você já ouviu isso, assim exprime: é dando que se recebe. Caio, aquilo que você dá para a vida, a vida lhe devolve. Percebe?

Caio engoliu a saliva sem nada proferir.

Permitiram-se um longo abraço, e aquilo fez muito bem para ele.

- Rá – exclamou ela – deixa eu te mostrar...

Antes deixou no banco da frente a pilha de pastas amarelas, e foi para a porta de trás. Ao abri-la, demonstrou com a mão direita o personagem que ali estava, numa gaiola de madeira.

- Lindo sabiá– falou ele, na falta de algo melhor para dizer.

- É ela.

- Sua?

- Acho que é...aconteceu outro dia, depois eu te conto. Vê-se responde os e-mails, hein...

- Qual o nome dela?

- Pia.

Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 07/04/2008
Reeditado em 02/11/2013
Código do texto: T935791
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