O SALVO CONDUTO

“Declaro , a quem interessar possa, que o portador deste tem autorização de livre andar, pois trata-se de cidadão de bem, homem de paz e não professa ideologia contrária ao nosso governo.” Assina Ramirez Pinto, sub-delegado de Santo Inácio.

Em silêncio, o policial leu o documento, que lhe apresentava o andante, cuidadosamente dobrado em quatro partes e envolto em um saco plástico, fumaceou lentamente um de palha buena e fumo barato, cumprimentou-o mecanicamente com um costumeiro “até a vista”, indo reunir-se de pronto com o parceiro de volante que mateava junto ao acampamento improvisado à beira do rio. A vida escorria lenta e preguiçosa naquela rotina de fiscalizar andejos, tropas e vez por outra algum fordeco reluzente, mas esses eram muito raros e sempre não fiscalizados, pois, a importância do dono não admitia sequer desconfiança alguma quanto menos uma ação de simples averiguação, a menos que o graúdo fosse desafeto político, mas isso é assunto para outro momento que não esse.

Respondeu ao cumprimento com um leve toque da mão direita na aba do Ramenzone; guardou cuidadosamente o salvo-conduto no bolso interno lado esquerdo do paletó; bateu a cinza do lenço colorado; atirou longe o toco de palheiro apagado; convidou o zaino estrela na espora para um galopito curto sem deixar de pensar na tarde antepenúltima quando entrara ao passo lento pela rua principal de Santo Inácio procurando um sobrado branco de dois pisos, largos e vistosos janelões azuis, sombreado por frondosa e hospitaleira figueira ali plantada por cuidadosas mãos quase sessenta anos antes. Apeara e dirigira-se à porta frontal no mesmo matiz das janelas, ostentando trabalhado arco superior onde se entendia, em romanos bem desenhados, o ano de 1851. Respondera à batida seca e forte na porta, um moreno claro, magro, rosto afilado, oscilando por volta de um e noventa de altura, expressão serena, de inspirar confiança pela serenidade do rosto, tranqüilidade dos gestos e clareza na voz pausada em tom educado e seguro. A essa figura, que assomara à porta do imponente casarão abrindo-a num gesto firme e decidido, foi logo se apressando nas formalidades o que chegara deixando ao palanque de guajuvira, amarrado, um zaino-negro, luzidio , pele de lontra, estrela à testa.

- Boa tarde “dotor”. A voz forte e bem pausada transpassou a sala de visitas e penetrou não muito forte na varanda, ali as mulheres da casa, mãe e filha, tomavam chá com algumas visitas costumeiras.

- Boa tarde, em que posso servi-lo? Respondeu o dono da casa que detinha o

cargo de sub-delegado de polícia e respondia pelo cargo onde quer que se encontrasse, já que não existia a sub-delegacia de polícia, pois o único prédio público no distrito era a sub-prefeitura, aliás nem tão público assim, posto que era uma cedência do Cel. Zeca Leal, chefe Chimango local muito relacionado na capital, inclusive com o próprio Gen. Flores da Cunha,diziam.

- Sou Juvenal Correa, moro no Garupá, na costa do Taragüi, passo da Timbaúva e vim pra mode lhe pedir um salvo-conduto, pois tenho pai e mãe já de idade avançada os dois, na fronteira do Quaraí e assim ando sempre de viagem nessas estradas e o senhor sabe como é, um documento da autoridade é por demais importante e ajuda muito nas andanças por aí.

A voz do sub-delegado Ramirez Pinto era quase inaudível na varanda,

mas o que se sabe é que Juvenal Correa, depois daquele dia, nunca mais fora visto no Garupá nem pelas colônias vizinhas. Todavia comentavam, à boca pequena, pelos galpões, pelos bolichos, ajuntamentos quaisquer de povo que se bandeara para os rumos da fronteira, assunto que, passado alguns meses, também caiu no esquecimento, algo natural naqueles dias, naqueles rincões.

Dois anos, dois anos e pouco, depois desse fato aparentemente sem maiores conseqüências, Mariana Krause disse ao recém-marido, Antonio Fuentes, que ouvira da varanda quando charlava com a esposa e filha de Ramirez Pinto, mais uma amiga, ouvira sim, tornou a repetir, um diálogo entre um tal Juvenal Correa e o dito sub-delegado, tendo ouvido que o primeiro pedira um salvo-conduto à autoridade, não sabendo porém se o conseguira, pois não escutara a resposta de Ramirez embora a conversa tenha se passado na sala contígua à varanda onde estava de conversa solta com as amigas.

Nada disse Antonio Fuentes à mulher, mas lembrara perfeitamente do dito cujo Juvenal que lhe matara um irmão numa festa em Toroquá, coisa pra mais de dois anos atrás, e desde então não tinha tido mais paz nem descanso, vivera esse tempo todo preparando-se para um encontro que “havera” de ser final e agora via, por essa conversa, que teria mais conta “pra ajustá”, devia cuidar também de quem lhe facilitara pra “ganhá” mundo, botando tempo e distância entre ao dois. Mariana nada percebeu, tampouco, imaginaria que estava se desatando um temporal muito grande e bem feio, assim continuou no seu mister de recolher-se aos afazeres da casa no silêncio e eficiência habituais, nem em sonhos percebeu que mexera numa “vespera”, mas isso era fato consumado e o tempo comprovaria.

O tempo, por sua vez, ia como de costume, passando vagarosamente naquele distrito onde descendentes de imigrantes alemães e italianos viviam em harmonia com “pelo duro” oriundos da Ibéria Cristã, mais arredios e reservados os primeiros; mais barulhentos, falastrões e festeiros os segundos e muito desconfiados os terceiros, pessoas de escasso vocabulário e código de princípios muito rígidos. Tudo acontecia como de costume, sucessão encadeada de fatos e assuntos corriqueiros entre roças, bolichos, igrejas e rodas de mate nos fins de tarde, mas logo haveria uma festa em Garupá e para lá acorreriam todos, de todos os credos, de todos os matizes e dos mais remotos rincões do vizindário, pois essas festas tinham o condão de igualar os desiguais e aproximar distâncias e diferenças.

O sol apareceu mais cedo. A primavera se fazia presente por onde quer que se olhasse, pra onde quer que se andasse, belíssimo dia para a festa mais importante do ano. Um lindo e simples espetáculo de cores entre os vestidos das mulheres e os campos ondulados do Garupá. Pela manhã missa, ao meio-dia churrasco e baile à noite ao som da gaitinha de seu Merêncio e da clarineta do alemão Frantz, mais algum outro instrumento que por certo se somaria ao improviso do momento. Passei todo dia por lá, mas não fui ao baile, por isso, o que lá se passou, quem me contou foi o gringo Sefrin que, da copa onde atendia todos com um sorriso largo e um falar bonachão, assistira a tudo de modo seguro e privilegiado.

Ao centro do lado direito da pista, oposto ao coreto dos músicos, Ramirez Pinto, o Cel Zeca Leal e Helmuth Pech conversavam sobre o assunto do momento.

- Não está me cheirando bem essa quizumba do Flôres com o Getúlio, disse

o primeiro. Dizem até que comprou armas no estrangeiro para a Brigada Militar, emendou.

- Briga de cachorro grande, compadre Ramirez, vai dividir a companheirada

de 30. Não entendo o porquê do Flôres querer nova constituição, afinal promessa é promessa, nem todas se pode cumprir. Verberou o Cel. Zeca Leal com o assentimento silencioso do pastor Pech, sempre caladão quando fora dos intermináveis sermões na igreja Luterana, mas muito respeitado e melhor ainda companheiro de cerveja e festa.

Dois tiros interromperam todas as conversas, inclusive uma história cabeluda do Hebling do moinho com a Chica da Filisbina que a Maria Straub contava para umas oito ou dez agrupadas em duas mesas, mais para o canto direito do salão. Antonio Fuentes, pala atirado para trás, indiferente ao entrevero de gritos, poeira, choro, fumaça, corre-corre para todos os lados, guardou o Smith, cabo de madrepérola e sumiu sem deixar rastro e sem ver o cunhado Vitório Krause varado pela 35 do Cabo Ramão Batista, também não viu Gregório Matos desferir três tiros pelas costas daquele que, percebendo tarde o reboliço, ainda tentara salvar o sub-delegado Ramirez em cuja impecável camisa branca desenhava-se funérea dália vermelha. E tudo aconteceu como um pé-de-vento, sem motivo maior e sem razão aparente, pois foi num de repente, sem aviso nem discussão conforme o relato gaguejado do gringo Sefrin.

moises silveira de menezes
Enviado por moises silveira de menezes em 07/12/2005
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