A última noite

Me causa estranheza que após morrer tantas vezes seja esta a última. 

Uma mensagem objetiva, clara, cruel... e estou demitido após trinta anos de dedicação aos interesses que nunca compartilhei, de um trabalho que nunca me orgulhei, mas que exerci ativamente porque precisava manter um padrão de vida condizente com meus interesses.

A última vez que peguei aquele elevador, que saí daquele prédio e que almocei na confeitaria Colombo. Teria pedido uma torta para sobremesa se soubesse o marco que este dia representaria. Homens de terno, mulheres belíssimas e elegantes rindo, brincando, alegres! Este mundo não mas me pertence. É desolador quando as luzes apagam-se tão abruptamente.

Trago as boas novas para minha esposa...

Vitória se foi. Não se despediu. Apenas se foi deixando o símbolo de vinte anos de casamento largado sobre a estante da sala. Nem uma carta de adeus, nada. Apenas a aliança. Maior clareza impossível. Até no fim minha mulher surpreende-me... mas tem um torta na geladeira.

Enquanto como penso no mundo que a pequena Olívia nunca conhecerá. O aborto afetou Vitória manchando nosso já difícil casamento. Ela nunca se curou dessa perda. Talvez nem eu. Mesmo após o Rodrigo nascer...

As maiores construções da minha vida ruíram de uma só vez. A poeira levanta e os escombros de avolumam. Me resta limpar a sujeira. Mas aos cinquenta anos? Quando preparava-me para iniciar meus últimos ciclos da vida uma reviravolta me trás ao começo dela. Tenho tudo, mas não tenho o mesmo vigor, a mesma ambição e nesse momento sequer a vontade.

Respiro fundo. Corrijo a postura. Vou até o quarto, na segunda gaveta da cômoda seda e erva além do maço de Malboro para disfarçar o cheiro. 

Retorno ao Centro. De metrô porque agora preciso economizar. Talvez eu venda o carro. Quanto um Civic 2019 pode me gerar?

Mas que importa o carro? Ainda tenho dinheiro. Dinheiro nunca me faltou. Trabalhei duro por ele, dediquei minha vida a ele... e no fim, ele, que busquei durante toda a vida é a única coisa que não poderei levar. Tantas aplicações deixarei para um filho que não vejo há oito anos. Mas é ele o meu legado. Ainda que não aceite, que me condene a existência jogando a si próprio no calvário da impureza ética e moral por ser filho de quem é!... ele é tudo que me resta e nem ele me quer apesar do meu sangue correr em suas veias. Minha mãe adorava música Couro de boi, do Sérgio Reis. Penso nela agora.

Desço na estação Cinelândia. Lembro-me dos tempos da faculdade de direito quando tudo era apenas um sonho. A menina do guichê, Isadora, tevez? Não lembro o nome. Mas lembro daqueles olhos redondos e tímidos. A juventude é uma droga inebriante e sublime, a velhice o desmame, a ressaca do dia seguinte. 

Vou até o Amarelinho, aí ao lado do cinema Odeon. Andressa. Lembro de nós sentados naquela escuridão. Qual filme era? Não consigo lembrar, mas naquele dia fiz valer fora da piscina meu pulmão de nadador! Beijamo-nos durante todo o filme. Foi mágico. O coração de uma mulher é maior refúgio do homem. Sempre fui bom com elas e elas boas pra mim.

Tomo assento. Peço uma cerveja. Nostalgia dos tempos de faculdade. Acho que foi depois dela que migrei para o mundo dos destilados. Whisky, Bourbon... um mundo de glamour, status, política e corrupção. 

Quantas vidas minha caneta Montblanc afetou? Era uma boa caneta. Assinei acordos, contratos, cheques! Minha cúmplice! Eis a única testemunha de todos os meus pecados.

Chega a cerveja. O garçom, Armando, serve-me. Dispenso os petiscos que me oferece, educadamente. Peço-lhe apenas que não deixe meu copo vazio. O último pedido para o último dia.

No horizonte contemplo a luz do Sol sumindo. Lindo espetáculo da natureza.

O que me resta se tudo me foi tirado?

Dez cervejas e estou pronto. Peço cinco latas de cerveja para levar até a praia do Flamengo. 

Me despeço do Armando e me vou após deixar-lhe cinquenta reais de caixinha. Que importa o dinheiro quando se tem em abundância?

Atravesso as pistas até o Passeio Público, atravesso mais uma vez e quase sou atropelado por um ônibus.

Melhor a passarela.

Sinto um vento nem quente e nem frio atingir meu rosto. Retiro o paletó, os sapatos. Sinto a maciez da areia sob meus pés, o frio que ela me transmite. Sinto-me leve enquanto ouço as agitadas ondas de um noite de Lua cheia.

O álcool me conduz aquela sensação de êxtase do tempos de LSD. Sinto o mundo a minha volta e percebo quão insignificante sou eu dentro dele.

Primeiro você minha cúmplice. Não poderia deixa-la testemunhar contra minha biografia, mancha-la. Mas penso que seria poético usar a mesma caneta que manchou tantas vidas manchar a minha neste final. Ótima ideia, mas muito tarde para uma assinatura, uma carta confessando meus pecados.

Já se foram três das cinco latas. A cerveja já está esquentando mas ainda agrada meu paladar. O baseado está na metade.

Meu último drink uma latinha de Brahma.

Abro a última e viro num só gole. Já sinto a coragem da embriaguez tomar-me o espírito. Sinto-me imortal, mas não invencível. Deveria ser o contrário. Mas nem tudo é perfeito.

Uma pequena falha neste roteiro de despedida.

Ascendo o último cigarro. Calmamente sinto aquela fumaça tomar meus pulmões para depois soltá-la no ar que a dissipa.

Caminho até o mar que parece saber minhas intenções. Ele me joga de volta. Não me quer ali. Não me quer faze-lo de túmulo. Mas é temporário dona Yemanja, quando consumar-me a morte jogue-me novamente para a areia. Dali em diante será problema de alguém. Não mais meu ou seu, que está impotente diante da minha vontade.

Cumpra-se! Me deixe ir. Permita a dona morte me buscar. Será ela uma mulher, homem ou uma criança?

Nada tenho a levar além da vergonha... será uma partida fácil. Receba-me e me deixe em paz por alguns momentos. Não irei lutar contra ti minha companheira. Apenas deixe-me dormir em teus braços.

Vejo uma criança, é minha filha, vindo me buscar.

John Raskólnikov
Enviado por John Raskólnikov em 17/04/2024
Reeditado em 17/04/2024
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