Clube dos Contos - montar um personagem lidando com seus próprios demônios de forma introspectiva e emotiva.

 

 

Demônios também comungam 

Era domingo de manhã e Júlio se encontraria com os filhos na igreja. Sua esposa demorou um pouco para se arrumar. Ficou mexendo no carro enquanto ela não chegava. Em 45 anos de casados isto sempre se repetia. Mas não reclamava que era bem pior  quando os filhos eram crianças.  Mas a rotina era a mesma. Laura estaria impecável na missa daquela manhã. Os anos foram bondosos com ela e aparentava ser bem mais jovem do que realmente era. Júlio  já estava todo grisalho e já tinha passado por uma cirurgia cardíaca  leve. A esposa chegou sorridente com um cheiro refrescante e partiram para a igreja. 

O orgulho de Júlio era que os 4 filhos, todos já morando em suas casas, eram católicos e frequentavam a mesma paróquia. Ele era uma figura importante, sempre colaborador assíduo e cristão, morador antigo do bairro, médico e reformado do exército. Ainda atuava em seu consultório particular, na clínica que levava seu nome,  mas não fazia mais cirurgias, deixando para os médicos mais jovens que trabalhavam com ele. Era um homem muito bem sucedido e temente a Deus. Um exemplo a se seguir.  Dois dos filhos eram médicos também e trabalhavam em sua clínica. 

A manhã quente de verão transcorreu bem e Júlio comungou como de costume. Para depois levar os netos mais jovens em seu carro para a casa onde haveria o tradicional almoço de família. 

Só que foram surpreendidos por um cachorro correndo pela rua e para não jogar o carro num poste, Júlio o atropelou. As crianças gritavam para que ele socorresse o animal. Ele saiu do carro, pegou o animal e colocou no banco do carona onde ele deu seu último suspiro e morreu.

Isto foi o bastante para acabar com o dia dele. Já em casa, os filhos enterraram o animal no quintal e Júlio ficou pensativo na varanda depois de olhar fixamente a mancha de sangue no assento do carro. 

Era sempre assim, para não ter uma consequência pior tomava uma decisão desesperada. Isto era uma constância em sua vida. O que levava ele de volta sempre aos seus segredos mais profundos.

Quando ainda era universitário e noivo de sua esposa teve um relacionamento com uma moça da mercearia perto da faculdade. Não foi conhecido por ninguém os encontros furtivos que tivera com ela. Sabia que estava errado mas sucumbiu ao desejo. 

Até que um dia  ela revelou estar grávida. Seus planos futuros estavam todos por água abaixo se admitisse a ideia de assumir este relacionamento. A moça concordou, também não queria que os pais soubessem que estava grávida. 

Sem muito dinheiro não podiam arcar com uma clínica de aborto e uma amiga da moça indicou um homem num bairro do subúrbio. 

No dia marcado, Júlio dirigia em silêncio , sua crença estava sendo contrariada e toda a sua educação também. A menina, naquele dia ainda parecia mais jovem, também se mantinha em silêncio. 

Deixou ela entrar na casa sozinha e ficou esperando no carro. A ideia até de ligar o rádio apavorava, tamanho era a sua aflição. Algumas horas se passaram até que o homem que a recebeu na entrada , apreensivo, voltava ao carro com ela nos braços envolta num lençol. 

- Alguma coisa deu errado, leva ela depressa para um hospital . 

Júlio não podia crer no que acontecia, suas mãos estavam geladas e suavam. O corpo desmaiado dela ao seu lado o transtornou. Ela parecia uma criança adormecida. 

Já não conseguia pensar direito. Dirigiu por muito tempo com muitas ideias na cabeça.  Como entraria no hospital? O que falaria ? Seria preso ? Não conhecia nada ou ninguém da família dela. E sua carreira? E sua noiva ? Pensou até na atitude do padre da sua igreja.

Dirigiu até anoitecer, era inverno e da sua boca saía fumaça quando respirava. Ela nem sequer gemia. Já estaria morta ? 

Parou o carro numa praça deserta, não sabia bem onde estava. Pegou ela no colo, seu corpo ainda quente, e sentou-a num banco, retirando o lençol sujo de sangue. E ali abandonara a mulher que tanto desejou um dia . 

Viajou de carro para a casa dos pais, como era de costume às sextas feiras. Num posto de gasolina ainda tentou limpar a mancha de sangue no assento. Não conseguiu,  jogou óleo por cima. 

Não demonstrou nenhum sentimento de medo durante o fim de semana. Comungou normalmente na igreja no domingo. Seu pai resolveu o problema do óleo no carro trocando o assento do carro. Ainda brincou com o filho.

- Quando tiver que pagar vai ter mais cuidado. 

A frase lhe caiu em cheio na mente. E martelou sua consciência em toda a volta para a faculdade

Agora sim estava temeroso, porém as semanas passavam e nenhuma notícia da morte da moça.  Nada foi falado pelos amigos ou pelos funcionários da mercearia, onde olhava a senhora que ocupava agora o caixa no lugar onde a vira pela primeira vez. Se houve  um crime de nada soube, só a sua consciência sabia. 

E assim se passavam os anos, discreto e silencioso, com seu tormento interior, vivendo só coisas boas da vida. 

Maldito cachorro que fez vir a tona todas aquelas lembranças. Estava ficando velho e a agonia dos tempos da juventude voltava com mais frequência. 

Durante a semana foi abordado por um casal que saía da clínica para receber cumprimentos. Eles traziam um recém nascido nos braços. 

- O senhor é  um homem de luz . Vive em estado de graça- disse o rapaz com os olhos marejados de lágrimas. Aquele jovem casal tinha lutado muito pela vida de seu filho. 

Aquela semana toda o estava torturando mais que o costume principalmente porque receberia um prêmio de cidadão exemplar da sua cidade, tudo organizado pelos filhos, a esposa já lhe contara,  perdendo a surpresa. Tudo por um ótimo cidadão, trabalhador respeitado na comunidade cristã  e ótimo pai. 

Pela primeira vez na vida pensou em se confessar. Estava firme neste propósito para exorcizar todos os seus demônios.

O domingo chegou. Era um dia de festa com direito a discurso e muitas homenagens. Todos estavam felizes. 

A ideia da confissão sumiu da sua mente. E exatamente na hora de se comungar fez uma pausa, ainda viu em sua mente a moça sentada no banco e sentiu o frio daquela noite. Parou. A esposa ainda lhe perguntou

- Está tudo bem? Está sentindo algo?

Ele balançou a cabeça negativamente sem saber se seus pés continuavam a andar. Mas como sempre em sua vida, ele caminhou até o altar e recebeu a hóstia do padre. De cabeça baixa voltou para seu lugar para dar graças a Deus por sua vida e de sua família .


 

FIM

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 10/04/2024
Código do texto: T8038474
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