Galopes no aço quente

— Bora que eu quero terminar cedo com isso. Assim que chegar em casa a patroa tá me esperando. Vou passar um tempo desafogando a saudade. Chega de índio pra mim, tô cheio já – disse o caminheiro, o que dirigia.

— O mesmo aqui. Eu tava ficando preocupado até. Não via a hora de um deles tentar te agarrar e levar pro mato. Aí, danou-se, porque eu não salvo. Mas pode deixar que levo os restos pra viúva – disse o outro, observando a mata para além da trilha com o braço pendurado na janela, fumando um cigarro.

— Mas que leve você! Seu asqueroso, filho duma égua. Que sejam negócios rápidos. Se bem que tudo que levamos pra eles serve. Qualquer pano de bunda. Quem vive embrenhado assim que nem eles não tem nada não, só a natureza.

— Sem falar que dessa vez ficamos com o pé na estrada por um bom tempo. Tô precisando dumas férias. Minhas negas já devem ter tudo me trocado e metido um monte de chifre. Tô até com dor de cabeça. Confere, passa a mão aqui na minha testa, cumpade.

— Arreda e vai pra lá. Não me atrapalha que eu tô dirigindo. Esse caminho ainda é uma boa porcaria. Tu fala delas, Zé, mas não é como se tivesse ficado quieto, né?

— Mas é aquilo, tem que manter o ritmo pra não esquecer como se faz. Tu tá assim todo engomadinho só porque hoje é volta, te conheço. Mas, diga aí, quem são os da vez mesmo? – perguntou o que estava fumando, enquanto buscava outro cigarro.

— Mas já esqueceu, Zé? Tu não presta. Só lembra da raba daquelas índias. Vamos atrás daqueles que vivem bem embrenhados e nos enjaulam algumas raridades. Hoje vai pro caixa, é dia de extra.

— Fala do pajé rico? Ele tá com um carro melhor que o meu e só anda no ouro no meio desse verde. Desperdício. Bate até uma inveja. Só que não. Índio pra mim é bicho e no dia que tiver algo melhor que aquelas rabas, aí eu troco de vício.

— E você acha que estão negociando só com a gente? Escuta isso do seu lado: é o silêncio. Não tá lembrado que aqui era muito pior e mais perigoso? Já não tem também aquele monte de zunido de bicho. Não passo desligado por aqui não.

— Nem eu – resmungou e acendeu o outro cigarro. — Desde aquela última vez eu também não tiro os olhos dessa mata. Deixo um buraco no que aparecer agora.

— Essa trilha mal feita aqui não seria apenas por conta da gente. As casas de reboco que eles levantaram lá é tudo obra de empreiteira. Aquilo lá vai virar uma dessas vilas de turismo, anote.

— Não é por isso que tamos investindo? Assim que der já ponho minhas barraquinhas aqui.

— Vai sonhando. Tu não dura tanto assim não. Mas tu também é um que só quer saber de grana e raba. Vai acabar estrebuchando sequinho qualquer dia desses.

— Vira essa boca pra lá. “Arreda”, não é o que tu sempre diz? Vida é uma só e eu tô vivendo a minha. Pra mim cada burcado desses que a gente se embrenha é uma oportunidade. E dá certo.

Os parceiros de negócio conversavam para se distrair da viagem. Algumas rotas e negócios não estavam no GPS. Podiam até reclamar do trajeto e do tempo, mas nunca foram de se atrasar para fazer qualquer dessas transações. Valia tudo desde que fosse um bom dia para ganhar dinheiro, sem mencionar o que ainda iriam vender nos fins de semana nas feiras.

Os tais índios da vez eram de uma tribo conhecida dos que tinham interesses em certas plantas, frutas e animais que só podiam ser encontrados mata adentro, ou seja, só quem conhecia os caminhos até o coração dela é que chegava lá e sabia voltar. Essa tribo, assim como outras, se modernizava, mandava dos seus para estudarem e crescerem com a cultura da cidade, fora os produtos e dinheiro que conseguiam para construir e aumentar sua infraestrutura, atrair gente para o turismo e ter seus luxos. Estavam abertos a todo tipo de negócio se isso contasse para a prosperidade do povo e as alegrias do pajé.

Após negociar preparam a caminhonete, organizam o carregamento e algumas pessoas que levariam junto.

— É, cumpade, os bichos tão ficando ligeiros. Tudo safo pra negociar. Vamos dar uma dura neles na próxima vez. – disse o da janela.

— Que se dane. Dinheiro é dinheiro. Tu fala como se não tivesse gostado da colheita deles. Vai vender tudo na feirinha amanhã bem cedinho que eu tô sabendo e tu ainda cobra pelo aluguel das barracas, seu salafrário. – disse o que dirigia, enquanto pegava a chave da caminhonete.

— O nome disso é vida, né? Por isso é bom ser o chefe, não preciso pedir perdão ou permissão. Tu tava é nervoso com o grandão te olhando de longe e encarando com aquela tanguinha – cutucou o que dirigia enquanto dava a partida.

— Pro cassete com você! Índio é tudo maluco. Tem tempo que estamos nessa e tudo tranquilo, mas é até bom pararmos um pouco pra não levantar bandeira e cuidar dos negócios na cidade mesmo. E aquele índio maluco sempre foi assim com a gente, não gosta dos nossos negócios e de ninguém de fora. Deve ter ficado bravinho pela carona que estamos dando pra gostosa que veio dessa vez.

— E é hoje que me embrenho naquela mata – disse o da janela, ajeitando o retrovisor.

— Só pega leve, faz o que tem que fazer e nem pense em engravidar ninguém, ó, discrição. Se bem que elas topam tudo por um trocado antes de chegar na cidade. Dá até vontade de relembrar minha despedida de solteiro.

— Tu é louco? Não quero pagar pensão pra ninguém. Mas bem, dirija logo que não quero que a noite seja longa, mas do que eu farei ser. A última coisa que quero é ter de passar mais tempo nesse caminhão fedido.

— Falou a Maria-fumaça. Se esse caminhão fosse tão ruim, nem tu, nem aqueles índios ou os que estamos levando esperariam pela chegada dele – o que dirigia bateu no lado de fora da porta para demonstrar o orgulho. — Isso aqui sim é o verdadeiro realizador de sonhos.

Gabriel L Amorim
Enviado por Gabriel L Amorim em 17/03/2024
Código do texto: T8021963
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