A mulher intrigante

A chuva fina tornava ainda mais fria a noite. Dava preguiça de sair, mas a lembrança de Santinha, a mulher intrigante sob o viaduto, a animou. Além da sopa levariam também uns agasalhos. Passou pela cozinha, encheu a xícara de café e foi se assentar com a mãe assistindo novela, mas não houve tempo. O interfone tocou. A turma tinha chegado com as quentinhas e agasalhos. Cuidando para não se queimar, bebeu rapidamente o café, beijou-a e partiu ao encontro da miséria.

A chuva apertou e foi difícil carregar as coisas até os lugares onde os mendigos, mais que se proteger, se escondiam da sociedade. Na roda de conversa, enquanto se deliciavam aquecendo o corpo com o chocolate quente, não viu a mulher sempre a esperá-la com o sorriso banguela e os olhos brilhantes.

- Passou mal e depois de dois dias pedindo socorro, enfim chegou ontem a ambulância para levá-la ao hospital.

Indignados, me contaram que estava desacordada e os padioleiros insinuavam que aquilo tudo fosse cachaça. Ninguém tinha ideia do lugar para onde a tinham levado e disseram que a médica, preenchendo a ficha, lhes perguntara o seu nome. Só sabiam ser Santinha e que depois de estar com eles, desde bem antes da pandemia, nunca a viram cheirar, fumar pedra e muito menos beber pinga.

Voltou preocupada para casa. Feriado no dia seguinte e aproveitou para visitar Santinha. Ligou para os bombeiros e lhe informaram que doentes e feridos recolhidos nas ruas eram encaminhados à Santa Casa. Na recepção perguntou sobre uma moradora de rua atendida sob o Viaduto Central há dois dias. A atendente em menos de um minuto lhe respondeu que havia uma indigente de identidade desconhecida e apelido Santinha. Só podia ser ela. Renata se animou pedindo para vê-la.

- Está na UTI e estamos fora do horário das visitas, mas vá até lá, 3º andar, Baia 12 e se alguém lhe perguntar, diga que a sua entrada foi liberada para que pudesse identificar a paciente.

Como se fosse possível, quem sabe pela palidez aumentada com a limpeza feita no corpo, Santinha parecia ainda mais magra. Tão imóvel que chegou a duvidar que estivesse viva. A enfermeira lhe disse que estava praticamente em coma.

- Ei, Santinha, sou eu a Renata.

Abriu os olhos esboçando o sorriso banguela.

- Viva, a Baia 12 acordou.

Disse alto uma das cuidadoras. Santinha fez sinal para que chegasse mais perto e, sussurrante, começou a falar.

- Rogo a Deus que não tenha me enganado. Acho que Ele a trouxe aqui para eu prestar contas com o passado. Desde que a vi o coração me dizia que somos ligadas.

Assustada, Renata lhe contou que desde o primeiro dia também tinha ficado impressionada.

- Como podia estar acontecendo aquilo se nunca havíamos nos visto?

- Sou Maria das Graças Vicentino.

- Jesus, temos o mesmo sobrenome.

- Isto só comprova o que meu coração sabia desde que a vi. Renata, minha filha! Agora posso morrer em paz.

- Isto tudo é tão absurdo, louco e confuso.

E Santinha lhe explicou que era viciada em crack e que não criaria a filha naquela promiscuidade. Levou-a então à irmã para, até que curada do vício, pudesse criá-la. Mas a cada dia se afundava mais na lama. Desistiu, pedindo para alguém ligar informando que tinha morrido atropelada. As últimas palavras quase não podiam ser escutadas. Renata, aos prantos, praticamente encostara o ouvido à boca sem dentes da sua mãe. O arfar do peito diminuía rapidamente.

O aviso estridente e o piscar das luzes dos aparelhos alertavam para problemas sérios na Baia 12. Em um minuto o leito tinha desaparecido em meio a tanta gente em volta. Renata recuou uns passos e, na confusão da cena, se esqueceram dela. Foram só uns minutos? Demorou muito tempo? Não saberia dizer. Aos poucos o enxame em volta de Santinha foi se desfazendo. A última a sair lhe cobriu o rosto. Foi então que se deram conta da sua presença.

- Você não podia estar aqui. Ela era sua conhecida?

- Ela era muito, muito mais do que isto. Era minha mãe.

Fernando Cyrino
Enviado por Fernando Cyrino em 09/10/2023
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