Zé da Silva

Zé da Silva

O início do ano letivo parece ser o único momento em que todos evitam muita exibição. É um encontro tímido entre os alunos e a escola mascarada de cartolinas e pirulitos para dar as boas-vindas a mais um ano carente de reformas. Talvez uma tinta aqui ou ali, mas isso dependeria da trégua do mau tempo.

As chuvas eram inimigas declaradas do acesso (que evoluía de difícil para quase impossível) até o portão de grades com ferros no formato de lança. Mas isso não impediria que Zé da Silva fosse conhecer a sua turma e degustar de uma nova merenda.

José, ou Zé, morava a uma curta distância a pé dos muros que guardavam o saber. O problema era chegar até lá tendo que se sujar nas poças de lama até que o barro destruísse de vez sua indumentária. A farda padrão que sua mãe lavara com tanto amor começava a revelar a aparência hostil dos farrapos que certamente colecionava em casa. Só que José ainda não era um maltrapilho, ou pelo menos não era para ser.

Ou enfrentava os obstáculos pelo caminho e tentava explicar depois à sua mãe o porque de ter de fazê-la tirar as manchas ou sofria por não poder ir de uniforme. Mas era só por causa desse dia. Se fosse nos outros, até que ele poderia pensar em vestir um casaco ou outra camisa por cima para trocar, mas as intenções de estreia e de deixar sua mãe orgulhosa destinavam Zé aos portões de lanças verticais e compridas para ganhar um pirulito.

O alívio em conseguir chegar veio do reencontro com amigos do bairro ou da sua antiga escola onde cumprira os anos do seu primeiro ciclo básico. Agora, maiorzinho, não queria mais saber de lancheiras bobinhas com ilustrações malfeitas dos seus desenhos animados favoritos. Era hora de andar apenas com uma mochila nas costas.

A mochila não era um artefato qualquer. Ela guardava lembranças e remendos de costura que foram passados de seus dois irmãos mais velhos, já excluídos do sistema pela preferência nas práticas comerciais e agrícolas. É melhor que os chamemos de empreendedores e autodidatas, mas ambos entristeceram a mãe quando decidiram largar os estudos. Zezinho era por fim a última esperança. O caçula que não podia errar como seus irmãos.

Toda essa cobrança, por mais que não fosse exibida verbalmente, era vista ainda mais nítida aos olhos da mãe quando tentava organizar tudo o que podia oferecer para que a escola convencesse seu menino a continuar. Não mais precisaria vê-lo aos prantos pela fome de não ter mais do que o pão com ovo para comer.

A fome não era em si o maior problema, mas ao menos a escola livraria-lhe de um ronco estomacal irregular. Pouparia os centavos de pão e de ovo daquele dia para passar na vendinha e comprar ao menos uma caneta nova, mas, o problema mesmo era ser abençoado com dois bons e belos olhos escuros e ainda não saber fazer direito nenhum tipo de leitura de palavras.

Achava a ideia mais sem noção do mundo ensinar um vocábulo que até sua mãe acharia esquisito ouvir. Ela não se importava com o coloquialismo pois nem imaginava que seria possível encontrar a formalidade num recinto tão longe onde morava. Daí, acabava se virando e todo mundo compreendia o que era dito sem a menor necessidade de batizar as coisas de substantivo isso ou aquilo.

Só que para aprender a ler, o pequeno José precisava fazer um pacto com a língua portuguesa de que aprenderia também as suas classes de palavras.

Naquele primeiro dia, antes de ir de encontro à sua primeira aula, reuniram-se todos os alunos no pátio a fim de ouvir a fala oficial da direção e a apresentação dos professores. Era um dia de entusiasmos e novas perspectivas, e todos pareciam bem empolgados. Os veteranos abandonavam a ideia da balbúrdia para se dedicarem a preservar a escola. Os novatos permaneciam calados esperando o primeiro sorriso ir de encontro ao desarme da timidez estampada nos pequenos rostos.

Por fim, os alunos só puderam se apresentar com a chegada do professor ou professora, em que até com a matéria se fazia suspense.

Bom, agora é a hora em que eu entro na sala e preparo a boa e velha cordialidade, apresentação minimamente arrogante e condições básicas de um bom convívio durante todo o ano.

Era uma turma da 6a série empolgada para aprender qualquer coisa que viesse à frente. Ficava a maioria ansiosa para conhecer a didática e o quão difícil poderia vir a ser o conteúdo já que subiram de patamar na educação com boas notas. Sentiam-se como os pequenos merecedores do saber. E de fato eram, exceto por aqueles que ainda se sentiam envergonhados quando o quadro começasse a se preencher sem decifrar o que havia nele a menos que o professor explicasse pacientemente.

Fui fazendo a chamada e decorando o nome de alguns. Eu tinha um ávido talento de identificar e catalogar os alunos nas seguintes categorias:

- Nerds

- Puxa-sacos

- Debochados

- Aspirantes a humoristas

- Sonecas

- Baderneiros

- PNEs (TDHA, autistas e outros)

- Plantas

Não cabe aqui entrar no mérito de colocar subgrupos dentro desse quadro. Para mim, todos eram devidamente importantes para a que pluralidade e a diversidade dentro da sala permitisse uma troca de conhecimentos de mundo aprofundada.

Deu para perceber que tratamos aqui de uma escola pública, não é? Pois bem.

Continuamos a saga do nosso pequeno herói com as únicas palavras que dissera ao longo do encontro: responde o seu nome à chamada. Achei curioso o fato de não possuir um nome composto meio ridículo, cujos pais condenavam os filhos a carregar no nome o seu fetichismo por algum vício. Nesses anos eu já conheci alguns Beatles como John Lennon e George Harrison, uma seita secreta de adoradores de Michael Douglas, algumas crianças nascidas idosas - não Benjamim Button - mas sim, Ariosvaldos, Waldemares até o perdido Severino, carinhosamente reduzido a Biu, marcas dos vícios lícitos como Carlton ou Stella.

Mas nada, absolutamente nada, fosse de perto ou de longe, nadica de nada era capaz de superar o contigente de escolhas desgraçadas de nomes compostos sem a menor harmonia em sua combinação. Parecia até que um nome existia para que o seu acompanhante conseguisse ferrá-lo.

Pouparei-me aqui de mencionar, mas tente imaginar uma mistura de feijoada com leite condensado e tire suas conclusões.

In separata não haveria problema algum em colocar algo tipo Enzo ou Ribamar. Ambos já são bastante incomuns, mas ouvi-los serem pronunciados juntos num nome completo era o cúmulo até para o pessoal do cartório.

Eu gostava de prestar atenção pois caso um dia eu viesse a assumir essa responsabilidade com a minha própria prole, gostaria de já poder eliminar opções.

Enquanto isso, Zezinho desenhava sabe Deus o quê nas folhas rasuradas de seu caderno de segunda mão, à expectativa de receber um novo sob a concessão da secretaria de educação. Até porque, se ele já fazia propaganda gratuita à gestão usando o uniforme patrocinado com tudo que era permitido colocar sobre o seu município, nada mais justo do que converter esse serviço com material escolar.

Os livros iam chegando bastante surrados às mãos da jovem turma, que se indignara com o descaso no material, se bem que, nas mãos de alguns, eles só durariam até a festa junina, onde serviriam de combustível para a fogueira.

Era triste ter que imaginar que nem todos que ali me olhavam acabariam gostando de mim. A falta de maturidade acaba nos colocando numa situação que se torna uma linha tênue entre o autoritarismo e a vulnerabilidade. Com isso, esse primeiro encontro era de grande importância também para mim como docente, pois precisava decifrar rápido quais eram os integrantes de cada um dos grupos e até quanto investiriam para tentar sabotar alguma coisa.

Nunca dei muita importância a alguma cara feia, enquanto a maioria das outras fixava seus olhos nos meus movimentos e andares pela sala. O terror de todo e qualquer aluno naquela idade era o de escrever demasiadamente no caderno assuntos que, muitas vezes, faziam-se presentes no surrado material, herança dos seus veteranos.

Eu até tinha boas razões para fazê-los copiar o que eu escrevia no quadro ainda que perguntassem se o assunto estava no livro.

Minha fala era simples:

- Aproveitem para inaugurar as suas canetas com uma linguagem bem mais fácil do que a do livro. Estou mastigando tudo o que acho necessário para que melhore a compreensão

Não demorou muito, até que um dos humoristas pegasse o gancho da palavra mastigar e formulasse a sua primeira tentativa de piada.

- Quer dizer que mastigar o papel do livro faz a gente entender melhor? Por isso o meu tá todo cheio de rasgo.

A turma ria.

Sinceramente, não acho que foi uma piada ruim. Olhando pelo lado crítico, tivemos uma inferência instantânea da semântica da palavra mastigar que partiu da minha fala e em alguns segundos se transformava numa piada que quase teria sido ruim, se não fosse a dura realidade do estado do material.

Esse tipo de sacada é até perdoável a partir do momento em que o foco do humor não é você, tampouco o que você falou. Esse alívio cômico conseguia reunir elementos que inevitavelmente consagrariam um humor com ironia, mas sem deboche. Parando assim para analisar, o humorista se colocou numa condição de desentendido para que assim aplicasse a piada. Soltei uma breve risada, mas não discordei daquilo. Agora era minha vez de continuar com a graça.

Todo professor tem talentos a serem desenvolvidos, mas o que está sempre em constante aperfeiçoamento é o do improviso. Eu me impressiono com a ideia dos alunos até darem excelentes sugestões para dar continuidade a um conteúdo que num piscar de olhos acabou. Nunca me faltaram dinâmicas ou atividades lúdicas que os agradece, mas acho que eles preferiam ouvir as piadas.

- Genial! - eu disse. - Já pensou na ideia de que se isso fosse verdade, não precisaríamos ir à escola e sim mudar nossos hábitos alimentares? Chegaríamos em um restaurante e falaríamos ao garçom:

Uma porção de matemática frita e um prato de português ao molho. De sobremesa, uma fatia de artes com cobertura de tinta guache.

Todos perceberam que aquilo que eu disse apenas intensificou a ideia do pequeno humorista, mas o pouco de graça que tinha acompanhava ao desenvolvimento da ideia.

Nem todos riram com vontade, mas riram pelo fato de que o meu humor cairia bem com o espírito dos recém-chegados e assim seríamos amigos.

Dito e feito.

Eliminando aqueles que logo se revelariam parte do mesmo grupo em que encaixaremos Zezinho mais adiante, lecionar aos demais alunos (maioria) era um excelente exercício para novas descobertas.

O que os professauros chamavam de lixeira, eu rebatizei como cesta de treinamento de lance livre. A bolinha feita com a folha de rascunho era ideal para as pequenas mãos dos meus pupilos, mas a regra era clara: só deve ser arremessada de modo profissional, no espaço que ficava entre o birô e a lousa, numa única tentativa. Caso errasse, além de não entrar para o time de base dos Lakers, eles deveriam coletar e dispensar adequadamente. Isso ajudava tanto na manutenção da limpeza como no estímulo às atividades físicas.

O pequeno Zé nem disso gostava. Depois de uma semana, reparei que ele não estava mais tão calado, mas se articulava demais com alguns baderneiros. Era fato: José estava montando alguma aliança para se encaixar em algum dos grupos e escolheu o mais chato de lidar, que colocaria em risco toda expectativa depositada por sua mãe.

Não era hora de se misturar aos nerds pedindo ajuda na leitura pois logo se tornaria fofoca. Enquanto ele não escrevesse nada no caderno, Zezinho se limitava a ser apenas um tanto preguiçoso, mas jamais analfabeto.

Essa palavra parece ter pesado bastante na vida de seus familiares. Seu pai abandonou a família para não ser preso por tantas agressões à sua mãe. Com isso, o irmão mais velho abrira mão da educação para se dedicar aos ofícios do pai alcoólatra e violento. O do meio era quem cuidava de fazer as vendas do que tiravam da colheita e só. Todos sacrificando seu futuro por não abrirem mão do naco de terra que lhes rendia macaxeira, banana e algumas hortaliças.

A mãe já estava cansada. Preferia agora que seus três filhos homens comandassem, pois vinha deles a única proteção contra o seu ex e amado agressor. Eles certamente amavam mais a mãe. Acabaram criando um mecanismo de defesa de tanto presenciarem as cenas humilhações e falsas acusações de quem lhes carregava a prole tão desejada de ter apenas filhos homens. Isso fez com que o pai de Zezinho acabasse cavando a própria cova.

Já com um porte físico mais resistente, o do meio juntou-se ao mais velho na oportunidade certa para se livrar do pai alcoólatra.

Houve um conflito que chegaria às vias de fato se o pequeno Zezinho, que nada tinha a ver com a situação, mostrasse ao seu pai de qual lado escolhera ficar.

Tomado pela raiva e vendo que todos o rejeitavam, a medida extrema de querer sacar a peixeira do bolso foi facilmente bloqueada pelas pauladas nas canelas com sua própria enxada.

- Ou tu some daqui com tua bebida ou te enterro aqui mesmo! A tua mulher nunca foi mainha, mas sim a pinga. Quando acabar a garrafa aproveita e faz amor com ela. É só enfiar no rabo. - disse o mais velho

- Vocês tudim vai me pagar, tá me ouvindo? Até tu visse Zé. A casa é minha e o que tem nela também. Tiro vocês daí nem que seja na bala!

-

O pai não hesitou em ameaçar, mas para garantir que não haveria mais a presença dele por perto, Zezinho tomou coragem para dizer algo que doeria nos ouvidos de seu genitor.

- Se tu fosse mermo um homem bom, eu faria de tudo pra dar ao senhor uma vida melhor um dia. Mas o preço de nós aqui não vale mais do que tua pinga.

Aquilo fez o pai se calar por um instante e admirar espantosamente a coragem de seu caçula.

- Toma aqui, painho. Esse era o dinheiro da pipoca de lanchar no sábado com os meninos. Mas vá simbora comprar sua cana e se prometer nunca Mais ficar pisar aqui eu lhe dou esse dinheiro todo sábado.

- O que é que tu tá insinuando, Zé ? Que eu não tenho dinheiro pra me bancar? Deixe de ser atrevido.

E deu-lhe uma tapa no rosto.

- Esse roçado é meu e antes de morrer eu taco fogo mas não deixo pra ninguém, ouviu?

Já sem paciência, mas ainda com o sentimento de obediência ao pai, o filho mais velho não aguentou e pegou a garrafa de pinga que estava na mão do pai.

- Pois bora começar ! O álcool já tá na mão! Pega o fogo Zezinho.

Antes que pudesse correr para buscar a bebida de volta, o pai mirou no filho com a garrafa e acertou-lhe com um tijolo solto na cabeça. Numa reação instantânea, o irmão de Zezinho mudara seu foco e derramou todo o líquido no corpo de seu pai, interceptado por um empurrão de surpresa.

- Traz pra cá esse fogo, Ze.

Esse foi o momento mais intenso da discussão, mas foi também o de reconhecimento à derrota do pai.

- Você não tem coragem, seu frouxo. Além disso eu sou seu pai.

A resposta do irmão veio de imediato.

- Eu tenho coragem de tá fazendo tudo aquilo que tu não faz, agora meta o pé daqui se não eu acendo você feito tocha de mato. Agora suma daqui que sem pinga tu não é nada. E se eu não te mato hoje, ela termina esse serviço por mim um dia. Vai, vaza!

E assim o pai de Zé retirou-se humilhado e num ranger dos dentes que ainda lhe sobravam. Mal conseguia se segurar em pé, nem decidia se chorava ou de planejava matar. Mas ele não era doido. Ele sabia que no presídio a pinga era escassa, cara e mal feita. Era melhor que se mantivesse distante.

De volta aos eventos de saber, comecei a prestar atenção em algumas panelinhas que se formavam enquanto que Zezinho ainda buscava se encaixar.

Achava-o meio lento. Mas talvez fosse só o fato de ser tímido.

Fiz então o meu próprio nivelamento de leitura coletiva com os alunos. Alguns eram muito bons, enquanto a maioria ficava na média. Foi assim que descobri que eu e Zezinho teríamos de conviver um pouco mais. Chegada a vez da leitura do menino - e olha que o livro era sobre o Patinho feio - o pequeno Zé negou-se a participar. Alegou estar sem os seus óculos, mas nunca os vi usando.

As debochadas possuem uma subcategoria foçada exclusivamente na fofoca. Não é legal ser X9, vai por mim. Mas, se não fosse por isso, eu não teria como ajudá-lo.

Forcei-o um pouco a admitir sua condição, mas a solução estava pronta. Montaria um sistema em que não apenas eu, mas os veteranos pudessem ser meus monitores no desenvolvimento nessa aprendizagem considerada tardia.

Vimos aqui que não era nada culpa de Zé e ele se empenhou fielmente em melhorar sua leitura. Foram leituras das mais fáceis até as mais inusitadas presentes no cotidiano.

Zé adorava ler o jornal diário. Ele conseguia finalmente combinar as palavras com a foto ilustrativa.

Pensava eu finalmente poder ter encontrado alguém para me ajudar durante as aulas de gêneros jornalísticos e fazia questão de levar um exemplar nos dias do seu reforço.

Em poucos meses e depois de muitas lágrimas oriundas da vontade de desistir, ele estava agora finalmente num patamar adequado o bastante para participar da aula sem medo. Com isso, deixou de lado os baderneiros e transitou entre planta e nerd.

Isso durou tempo suficiente para a sua última leitura do mais recente exemplar do jornal.

Com o primeiro boletim recheado de notas que estavam pelo menos na média, a felicidade era a de poder ir correndo contar à sua mãe e irmãos. Os outros tinham ido à feira e logo chegariam. Entretanto, o pequeno Zé via-se como merecedor de uma recompensa.

Era final de semana e nos seus ciclos de leitura conseguiu fazer amizade com alguns colegas que moravam alguns quarteirões abaixo. Zé havia sido convidado para jogar videogame e dormir na casa de seu monitor junto a mais dois amigos que conquistou nesse processo.

- posso ir, mainha?

De início a mãe hesitou, mas não se conteve em ver aquele rosto finalmente alegre por ser que estava enfim no caminho certo, que o levaria para longe.

Como toda criança precisa de aliados, os amigos foram juntos para assegurar ainda mais a mãe que, por fim, deu-lhe permissão

- Vá, meu filho. Você merece. Deixe aqui o papel pra eu mostrar a seus irmãos. Eles vão ficar muito orgulhos.

- Tá certo, mainha. De lá eu pego direto pra escola, viu? Tô com roupa na mochila.

Zezinho não conteve a emoção, catou a bike e saiu num pinote com a turma. Tão rápido que, já mais distante de casa, pensou ter avisado seu pai embriagando-se num boteco de esquina, perto da mata. Numa virada de pescoço, ambos se encararam para ter a certeza de que eram os mesmos que pensavam ser.

Entristecia ver que o pequeno Zé não teria como compartilhar do mesmo sentimento com seu pai. Ainda restava o medo, a agonia. Mas depois de tanto tempo, ele aceitou que seu pai terminaria ali.

Mal sabia ele que as coisas mudariam.

No dia seguinte, eu passei na banca de jornal e comprei o de sempre: aquele que seria para a leitura do pequeno Zé. O que me incomodava não era o preço, longe disso. Era tão barato que economizaram até no editor. A capa era um mix de informações que variavam entre fofocas, crimes e horóscopo.

Cheguei na escola logo cedo, e podia ver no caminho as bicicletas subindo o meio fio de entrada ao portão. Não vou mentir. Sentia-me animado para ouvir o Feedback de José sobre o seu desempenho.

- Edição do dia, hein? Acabou de sair do forno.

- Obrigado, professor.

Costumava observar de perto o quanto era admirável a leitura de uma criança. Ele folheava para lá e para cá, até que num momento, o que achei ser uma dúvida de leitura, estava mais para uma cobrança de explicação.

Aqueles olhos, enfim libertados da cegueira do analfabetismo, olhavam confusos em querer entender uma única palavra.

- professor, o que é “executa”? - Eu agi naturalmente por achar que se tratava do exercício e respondi-lhe

- Em que sentido? O que está escrito aí?

E lá dizia “ Homem invade casa onde moravam a ex esposa e a executa junto a dois de seus três filhos”.

Não respondi de imediato. Deixei que ele refletisse um pouco.

- Tem alguma foto aí?

Havia apenas a prisão de um homem sem camisa e de rosto virado, mas o texto não nos trai.

Logo, nunca pensei que o preço pela leitura acabaria sendo pago por encontrar a pior de todas as notícias. Eu pude presumir que se tratava de sua família, mas só depois de vê-lo se espantar. Não sabia o que poderia dizer.

Eu estava diante de um sobrevivente. Poderia me fingir de louco e negar o significado ou dizer que algo estava fora do contexto. Mas só conseguia pensar na saga que o pequeno Zé teria adiante: culpar-se ou buscar entender a sua permanência em vida.

- Meu jovem, Zezinho. Executar pode haver mais de um sentido, mas acredito que o melhor deles, seja o de fazer acontecer. Como você fez com suas notas.

Preferi me despedir da maneira como o conheci. Dando-lhe, talvez pela última vez durante os próximos anos, a oportunidade de vê-lo aprender.

Ribamar Netto

RNetto
Enviado por RNetto em 09/08/2023
Código do texto: T7857622
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