Triste Uibaí! Ó quão dessemelhante (…)

1

Quando adentrei a sala - tomada pelas mãos de minha mãe e provavelmente de meu pai - enquanto olhava de soslaio para minha avó, diziam-me para abraçá-la, cumprimentá-la, receber a bênção. É óbvio que fazer isso já era tão natural que não precisava ser cobrado, mas naquele instante eu pensei que havia ali uma exceção natural, um estranhamento esperado, um receio respeitoso. Minha avó, Carmita, estava da mesma altura que eu - que naquela época contava 6 anos - sentada em um tamborete velho, dos mais baixos que meu avô já havia feito. Ou comprado na feira. Abracei-a. Ela falava o de sempre: “minha vozinha/ ô, minha vozinha, dá a ‘bença’ de vó”. E depois se punha em lágrimas novamente. Estava com medo de vê-la, de encará-la ali sentada com os joelhos quase tocando o chão, e com o rosto entre as pernas. “Não quer sentar em uma cadeira, dona Carmita?”. Respondia sempre que não. Minha mãe dizia o mesmo, que daquele jeito não era bom para ela, que se sentasse em outro lugar. “Não, mainha, não”. Respondia. E se punha a chorar novamente. Minha mãe, nos breves lapsos de força que apresentava, repetia a mesma sugestão. Não me recordo se minha avó levantou-se ou não de tão perto do chão que estava. Mas provavelmente alguém a pegou pelos braços, fazendo com que se levantasse por vontade da maioria. Porém, ainda hoje, não sei se vó Carmita algum dia saiu daquele tamborete.

Naquela manhã, eu acordei ouvindo barulho de gente em minha casa. Não era tão comum, mas nada que me fizesse estranhar muito. Como era de costume, eu ficava tentando adivinhar quais eram as visitas antes de abrir a porta do quarto, como se saber com antecedência me ajudasse a ensaiar o que dizer ao encontrá-las. Era tímida e ansiosa. Abri. Fui buscar por mãe, pai. Ao sair do meu quarto, ainda escurecido pelas cortinas, a sala parecia um palco com holofotes e plateia. E eu, a atração desavisada. A janela da sala estava aberta, entrava uma luz forte de sol, era manhã de calor na Bahia. As pessoas, diferentemente do que fariam em uma apresentação, não sorriram ao me ver entrar e tampouco me aplaudiram. Esboçaram, na verdade, um sorriso de compaixão. E falavam-me coisas de que não tinha conhecimento. Mas era esperta e comecei a questionar, ansiosa. Eu já sabia o que era tensão, o medo já me era um órgão. Minha mãe balbuciou algo, não lembro se tocou em mim, se olhou para mim. Sei que não conseguia. Pediu, então, para que meu pai me retirasse dali e me explicasse o que estava havendo.

Meu pai me conduziu ao quarto deles, coisa que eu estranhei. “Por que não no meu?”, pensei. Deveria ser algo sério. “Senta, Pin”, disse ele, enquanto eu timidamente tentava me encaixar naquela cama alta, bem arrumada, com um colchão de molas que eu particularmente adorava e nutria um profundo desejo de pular como se não houvesse amanhã. “Pin” era um dos meus muitos e inexplicáveis apelidos. Sentei. O máximo que consegui foi a beirada da cama. Ele quis me ajeitar, mas viu que não valeria a pena. Não me lembro de como ele começou, mas estava visivelmente triste. “Não tem Eduardo, teu tio?”. Eu reclinei a cabeça com ar de interrogação, porque não o chamava de tio ou de Eduardo. “Tei”, eu disse. “Sim, tei ”, concordou ele. “É porque ‘tei’ morreu em um acidente de carro”, disse cortando as palavras, talvez que nem fossem exatamente essas. Exceto por “tei”, que foi como eu aprendi a falar “tio”. “Não”, eu disse. Ele repetia que sim, pacientemente. Mas senti um quase sorriso ao ver que minha teimosia, em ser sempre “do contra”, se aplicava em todos os momentos. Não deixou o riso vir e, sério, repetia a frase. “Mas ele não pode ter morrido, eu vi ele ontem”. Ele dizia que sim, que sabia que eu o tinha visto ontem, mas que as coisas da vida eram assim mesmo. E eu continuava a reforçar meu argumento, afirmando que não era possível, já que eu o tinha visto ontem, recebido sua bênção ontem, já que ele era novo e graúdo, já que ele gostava tanto de festas. Não poderia, portanto, ter simplesmente deixado de viver. Mas deixou, meu pai não estava brincando. Eu fiz que entendi e chorei um pouco, Fui carregada nas costas até a sala. “Ô, gente”, diziam piedosamente. “Contou”, diziam outros, em uma constatação óbvia. “E essa é a filha, que tá assim chorando?”, perguntou uma. “Não, é a sobrinha. A filha é a outra”, responderam. A outra era um bebê de um ano, que não chorava, apenas apontava para o caixão como se fosse outro mero objeto qualquer - como faz toda criança pequena. Perguntava se o pai estava dormindo, que horas iria acordar, por que estava demorando tanto. Ninguém ali sabia responder. Eu não alcançava o caixão, que na minha memória estava mais alto do que o normal, não tinha coragem de vê-lo. Perguntaram-me se eu gostaria, diversas vezes, mas eu não sabia. Fui tomada pela ansiedade, pela indecisão. Minha mãe perguntou também, talvez umas duas vezes demonstrando paciência, mas na terceira não quis ouvir minha indagação novamente. Eu não tinha coragem de vê-lo. Mas ia e voltava, espiando, arredia. Mirava-o como se fosse proibido, como se só de olhar um morto eu me pusesse morta também, gélida e empalidecida. Para mim, tudo estava azulado naquele dia. A atmosfera, o piso antiaderente da garagem de meus avós e particularmente meu tio, que me parecia ora branco cor de gesso, ora azul cor de enterro.

2

Nos dias que se sucederam à morte de meu tio, ainda via-se gente na rua usando as camisetas com seu rosto estampado. Quando nos deparávamos com isso, sinto que minha vó retornava àquele tamborete e que sua cabeça saía dos ares para reviver aquele momento. As pessoas ficavam sem graça, constrangidas por estarem vestindo a saudade e a dor que minha família sentia. “Mas pode usar, tem que usar mesmo para mostrar que estamos lembrando. E é uma boa camiseta”. Lembro-me de ouvir isso, sobre o pano. Para mim, aquele tecido é característico dos enterros, propaganda de comércios e de souvenirs estampados com a frase: “Estive em Aracaju-SE e lembrei de você”, por exemplo. Eu não gosto. Ainda guardo a camiseta, entretanto, que a cada ano vejo menor. Como eu era pequena. Mas nem mesmo a minha caberia em Bella, minha prima de um ano, que não se lembraria de nada. Foi só mais um dia, nos braços da mãe, apontando o dedo babado para o rosto do pai - que não respondia mais.

Depois daquilo, eu não me recordo com quanto tempo depois meus pais quiseram me levar em “Nilzete”, só assim eu ouvia falar. Sabia quem era, mas não sabia por que tinha que ir vê-la. Ela atendia no Sindicato dos Trabalhadores de minha cidade, um espaço pequeno, cuja placa mal se lia devido às folhas das plantas, que já cobriam quase todo o azulejo verde. Era, pelo menos, harmônico. Eu não gostava daquele lugar, não entendia o porquê de estar ali nas minhas manhãs, enquanto poderia estar dormindo ou assistindo desenhos animados. Toda segunda-feira, eu já fazia terapia aos seis anos sem saber o que isso queria dizer. Omitiram-me. A psicóloga me deu razão, eu tinha de saber onde estava sendo levada. Desde esse momento, experimentei o gosto de ouvir dizer que estava certa e nunca mais me libertei. Mas, naquela hora, até desacreditei que realmente a minha contestação fazia sentido.

3

Quase esqueci da infeliz coincidência envolvendo os “Eduardos” da minha vida. Dia 26 de julho é dia de algo, de alguém. Às 6h, ou antes, meus avós vão ao cemitério deixar flores. No dia 26 de julho e no dia 26 de todos os outros meses. Amanhã, serão 13 anos fazendo isso. Em julho, o 26 também é dia de aniversário. De meu pai, Eduardo, que dividiu o nome e essa data com o único tio que falava comigo. Ainda que pouco. Tenho outros dois que são mudos por razões distintas: um pela distância; e o outro por doença. Não mudez, que nem doença é. Doente da cabeça. Não quer falar comigo, nunca quis. Eu tenho o demônio em mim, ele disse. Nos meus dedinhos. É porque eu tenho dois dedos a mais nas mãos. É de família. Da que é minha. Ouvia isso sempre que me levavam para lá. Não ia muito. Não faziam questão. Não muito. Não sempre. E, quem deveria querer, não estava presente.

Alguma coisa me fazia gostar e alguma coisa muito mais consistente me fazia ter medo daquele lugar. Da casa de meu pai, de seus pais. Mas, mesmo assim, eu preferia muito mais como era antes daquela reforma “faraônica” que inventaram de fazer. É um casarão no meio da terra, do mato, com um rango laranja na frente. Eu não sei se ainda é laranja. Mas com certeza não chama mais atenção do que aquela casa, antes pequena e azul, agora gigante e obviamente branca com um jardinzinho na frente. Não consegui decorar a fachada, só me lembro da garagem. Do carro. Do cachorro que eu tinha medo, que me prometiam prender, mas que às vezes não prendiam. Do vazio de lá. Dos olhares, de como tudo me repelia. De como meu tio me olhava. Nunca falei essa palavra para ele, pois ele também dizia que eu só seria sua sobrinha após me formar em Harvard. Acho que um diploma de Harvard tiraria o demônio de mim, dos meus dedinhos, na cabeça dele. Honestamente, eu não tenho raiva ou ressentimento de nada disso. E nem ninguém da minha família, todos acham engraçado. Eu acho criativo. E triste também. Não deve ser fácil ter uma mente em constante agonia. Eu, que sou sã, já me considero agoniada. Veja lá quem é considerado doido. Mas se tem uma coisa que eu posso dizer, com firmeza, é que no meu sangue tem doido dos dois lados. Uns são doentes, porque ficaram doentes. Os outros, por presenciarem os primeiros, também não são muito “certos”.

Eu não sei como meu tio era exatamente, mas sei que era o mais certo da família. Pelo menos dali de casa. Por fazer justamente aquilo que tinha que fazer, que queria, sem se importar com ninguém. Soa esquisito, mas ele estava certo. Era tímido, sonso, bonito, teimoso e com um coração de menino. Só cresceu de tamanho, criou barba. Mas ainda era um menino, tinha 23. Minha mãe, com 25, já era minha mãe. Ele morreu por ser bom, me diziam. Sim, por ser “bom”. “Os bons morrem primeiro”. Deve existir alguma coisa desse tipo em algum lugar. E eu ouvi. “Se morreu jovem, é porque cumpriu sua missão”. Se morreu novo, é porque era bom para esta Terra de provações”. E coisas do tipo. Mas eu também ouvi que ele morreu por ter aceitado ajudar um amigo, que pediu carona. Isso de fato aconteceu. Ele estava dormindo no carro, acredito que no meio de uma festa, provavelmente cansado. Morrer é tão humano. Morrer é tão humano que chega a ser bobo. Carona, ser “bom”, ajudar um amigo. Tudo isso é tão normal e ridículo que até hoje é estranho pensar que ele se foi assim, desse jeito. E que era pra ser desse jeito, o que é pior ainda. O carro ficou destruído, exceto o banco do passageiro. Meu tio morreu na hora, o amigo quebrou a correia das Havaianas que usava. De uma, apenas. Eu não consigo imaginar a dor de minha família. Um caixão ao lado de um chinelo parcialmente quebrado. Facilmente remendável. Um prego resolveria, uma nova correia, um novo par. Quatro meses depois, meu bisavô experimentou partir enquanto assistia à missa. Assim, como as coisas são. E como são as coisas…