Surto

A arma sempre ficava ali na gaveta. No entanto, hoje resolvi sair com ela pelo pátio dos alunos. Meu passeio me provocou uma sensação diferente, algo que nunca havia experimentado, a saber: poder. Sim, poder. Olhei aquela turba de alunos despreocupada, com uma falsa sensação de segurança, pois bastava que eu sacasse o meu 38 e começasse a atirar nela. Pronto, o caos estaria armado. Para ser sincero, uma vontade quase incontrolável me incomodava. A única coisa que acalmava essa vontade era a ideia de outro poder, a saber: o Estado. Sim, o Estado. Eu seria preso, pois não tenho nenhuma vontade de me suicidar.

Não entendo esses lunáticos que matam as pessoas e depois se suicidam. Como não querer ver o resultado de seus atos, as consequências? Certamente, muitas pessoas criarão narrativas para justificar o ato. Colocarão a culpa na sociedade, no consumismo, nos estados unidos, etc. Como abandonar esse circo depois de ter sido o artista principal, o protagonista?

Eu não. Eu mataria e depois aceitaria as consequências. Elaboraria previamente uma fala impactante, ensaiaria um rosto tenso, gestos. Procuraria usar as palavras que dominam os vieses. Escolheria o inimigo do mainstream para atacar com minha fala. Dissimularia inteligência e citaria Nietzsche, ou Dostoiévski, ou Trotsky. Tenho certeza que em pouco tempo me transformariam num herói. Num revolucionário. Ficaria pouco tempo enjaulado e sairia com grandes chances de alcançar o Congresso. Posso até ver às manchetes: DE CRIMINOSO AO SENADO.

Certamente escreveriam monografias sobre o meu crime e o termo hediondo deveria passar por uma nova interpretação. Como assim, matar pessoas brancas de classe média que pisam nos pobres é um crime hediondo? Dirão que fiz justiça para os mais pobres e oprimidos da terra. É certo que eu sofreria com a oposição dos conservadores, mas isso seria fácil de resolver, bastaria revelar suas contradições, seus crimes muito mais hediondos que o meu. Ora, meu crime foi fruto de um surto, surto este provocado pelas mazelas do magistério, pelas injustiças sociais, etc.

- Professor, solte a arma… Solte a arma…

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 12/05/2022
Código do texto: T7514626
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