Pequenos Milagres da Vida

Eu pegava o bonde sempre naquele mesmo horário. Por isso as pessoas eram quase as mesmas, todos os dias, tanto na ida quanto na volta. Mas era na volta que as viagens mais me marcavam.

Tinha uma estação que sempre tinha um mendigo todo sujo e fedido que ficava pedindo esmolas. As pessoas o evitavam com aquelas caras de nojo. Alguns se apiedavam, mas a ojeriza falava mais alto e nada faziam.

Ironicamente, quando passávamos por essa estação, sempre havia um grupo de missionários de alguma instituição dentro do bonde falando a todos sobre auxiliarmos uns aos outros nas nossas aflições. Eles pareciam sempre estarem indo para alguma ação social em algum lugar.

Tinha a estação/palco, como eu mentalmente chamava, onde um artista de rua começava a fazer uma performance para arrecadar fundos para sua sobrevivência. Ele dizia que seu sonho era atuar num grande projeto para ajudar as pessoas.

Mas quem mais me chamava a atenção era uma menininha que sempre quando eu pegava aquele bonde, ela já estava lá. Ela tinha dificuldades para andar, usava muletas. Aparentava uns 10 anos e estava sempre acompanhada de sua mãe, uma senhora meio sisuda, de pouca conversa e pouca paciência. Ela, a menina, sempre alegre, bem humorada e querendo brincar, jogando uma bolinha para alguém jogar de volta pra ela. Parece o tipo de brincadeira que fazemos com cachorrinhos, pensei. O problema da brincadeira que a jovenzinha propunha é que se a pessoa não pegasse a bola, teria que buscar e se ela não pegasse a bola, a pessoa também teria que buscar. Assim, dificilmente alguém se dispunha a brincar com aquela menina, que mesmo assim não negava um meigo sorriso a ninguém. Fingi não perceber que ela estava à procura de uma pareceria para sua brincadeira, enquanto ela parecia estar me chamando. Sua mãe então deu um berro:

- Deixa de ser chata, garota! Fica incomodando os outros!

Olhei de "rabo de olho" para a menina, que estava me olhando com um olhar travesso segurando o riso. Na sua estação de descida, ela sempre perguntava a mãe se podia tentar descer andando, ao que sua mãe respondia:

- pra que, se você sabe que não anda? Só pra cair e me dar mais trabalho? Pega logo essas muletas e não nos faça perder tempo!

Então ela pegava suas muletas e descia.

Faltou falar de mim: Homem de negócios, frustrado, mal sucedido, mal pago, estressado com a mesquinhez da minha vida. Sempre tentando um novo projeto e sempre dando com os burros n'água. Nas horas vagas costumava pintar quadros e tentava emplacar alguma exposição, mas sempre recusavam meus quadros. O último contato que tentei, não havia recebido resposta. Com isso, deixei meus quadros de lado e minha vida ficou limitada ao meu irritante trabalho.

- Boa tarde, senhor...

Eu passava pela entrada do meu prédio tão rápido que mal dava tempo de ouvir meu nome ser pronunciado pelo porteiro. Respondê-lo, nem pensar.

No dia seguinte, a mesma rotina, a mesma chatice, o mesmo estresse e o mesmo desânimo de sempre, a não ser pela minha viagem de volta naquele bonde. Aquela menininha de muletas parecia mexer um pouco com os ânimos de todos com sua alegria, embora ninguém desse muita atenção a ela.

Naquele dia, eu estava querendo tanto fazer algo diferente que torci muito pra que ela me chamasse para brincar com ela. Foi exatamente o que aconteceu.

- Tio do terno preto, brinca comigo?

Eu era o "Tio do terno preto". Isso me fez ter uma certa perspectiva sobre minha apresentação pessoal. Eu não parecia um homem de negócios, muito menos um artista plástico. Eu parecia mais um agente funerário.

Enfim, brinquei com a menina, mas não tive a paciência que esperei que tivesse e logo pedi para parar. Então ela me surpreendeu com um pedido:

- Tio, reza comigo um Pai Nosso? - Ô menina chata! Disse a dona sisuda mãe dela.

Pra mim, a menina nem era chata, mas será que eu ainda sabia rezar um Pai Nosso? Mas como recusar isso com todo mundo no bonde olhando pra mim? Então aceitei e logo todos (inclusive eu) descobriram que eu não ia além do "(...)que estais no céu(...)".

A simpática menina continuou, tentando disfarçar que estava achando engraçado o fato de eu estar sem graça por não saber rezar o Pai Nosso. Aquilo foi contagiando as pessoas em volta. Primeiro os missionários, depois o artista de rua que interrompeu sua performance e acompanhou, não sem uma atuação dramática e, na estação onde o mendiguinho fedido pedia esmolas, o sujeito também se rendeu ao coro. Daí um dos missionários aproveitou e disse:

- Precisamos nos amar e nos ajudar uns aos outros! Daí a menina apontou aquele mendigo e disse: - ele precisa de ajuda. Houve um silêncio de olhares mútuos.

Após alguns minutos naquela viagem, a menina me chamou:

- Tio do terno preto, sabe o que eu li num livro? Eu li que o amor cura. - Em que livro você leu isso? Perguntei.

- Não lembro. Era o livro de alguém que estava ao meu lado noutro dia. Respondeu a menina, sempre com aquele simpático e ingênuo sorriso.

Ao chegar na sua estação, "mãe, deixa eu tentar descer andando?" - Não!...

Quando cheguei no meu prédio, o porteiro estava atendendo a um morador e não se deu conta da minha chegada. Incrivelmente, eu senti falta do seu "boa tarde" nesse dia. Cheguei em casa, fui direto para internet para procurar o Pai Nosso. Queria "ensaiar" um pouco para não correr o risco de passar vergonha novamente. Já que eu repetiria algumas vezes, resolvi fazer isso como se eu estivesse de fato falando com Deus. Vai que ele existe mesmo e resolve me ouvir...

Estranhamente, naquele dia, resolvi retornar aos meus quadros, recuperar aquilo que realmente eu gostava de fazer, mesmo estando desapontado com a resposta da galeria, que não tinha recebido. E daí? Vou pintar.

Naquele dia, tomei uma decisão radical: ficar alguns dias sem trabalhar. Tava de saco cheio de tudo e de todos. Desliguei meu celular e passei uns dias somente pintando e "ensaiando" o Pai Nosso. Não senti falta daquele meu trabalho chato, mas pra minha surpresa, senti falta das pessoas que voltavam comigo naquele bonde. Só então percebi que aquelas pessoas haviam se tornado uma espécie de família.

Alguns dias depois retornei ao trabalho, ciente que aquele dia poderia ser um dos piores dias da minha vida recente, mas ainda assim, eu estava alegre (eu disse "alegre"?) e confiante. Parecia que nada naquele dia seria capaz de me aborrecer.

Na chegada ao trabalho, recebi o recado que estava demitido. Era pra eu ficar muito preocupado com aquilo, mas me senti aliviado. Passei o tempo que seria do meu expediente fazendo várias coisas, passeando na orla, indo ao museu, ao cinema, enfim, eu queria voltar pra casa naquele bonde daquele horário de sempre. Mas a primeira coisa que fiz foi trocar de roupa. Eu tinha decidido que levaria uma roupa mais leve e colorida para trocar quando saísse do trabalho. Não queria mais parecer um agente funerário.

Quando peguei o bonde, não sei explicar, mas algo estava diferente. A menina das muletas gritou! -Tio do terno... ih mas que roupa legal! Vamos brincar de jogar bola?

- Sim, respondi. Mas primeiro vamos rezar o Pai Nosso? (Não queria correr o risco de esquecer e passar vergonha de novo). Ela alegremente aceitou. Novamente, a oração contagiou os presentes. Quando chegamos no "Amém!", estávamos na estação onde aquele mendiguinho vivia pedindo esmolas. Estava tendo uma ação social com aqueles missionários que costumavam estar no nosso bonde. Para a minha surpresa, o mendiguinho (acho que agora é ex mendigo) estava com roupas novas e limpas. Cabelo cortado, barba feita e corpo e alma lavados. Estava ajudando os missionários com outros necessitados. Enquanto isso, poemas lindíssimos eram cantados pelo artista de rua que viajava conosco e que também estava trabalhando no projeto. Todos acenaram alegremente para nós no bonde. A menina olhou pra mim e disse: - viu como o amor cura? Só a dona sisuda continuava sisuda.

Chegou a estação da bela jovenzinha e fiquei esperando que ela fosse pedir novamente para tentar descer andando e, novamente receber a recusa da dona sisuda.

Mas para a surpresa de todos, quando parecia que ela pegaria as muletas, a menina deu um salto e saiu andando, depois correndo e gritando: CONSEGUI! CONSEGUI! CONSEGUI! E saiu pulando sem olhar pra mais nada. A dona sisuda saiu desesperada com as muletas nas mãos, chorando e gargalhando ao mesmo tempo e chamando por: JOANA! VOCÊ ESTÁ ANDANDO, JOANA!

Todos no bonde olhavam estupefatos e com os olhos marejados de lágrimas. Só então descobri que o nome daquela garotinha era Joana.

Quando cheguei a entrada do meu prédio, brindei o meu porteiro com um: "boa tarde, senhor Ricardo!" Ao que ele respondeu um tanto engasgado: - Boa tarde... O senhor sabe meu nome? Vendo-o com um sorriso emocionado, balancei a cabeça positivamente e disse: "Sim, senhor Ricardo, eu sei o seu nome, sim." Então virei para o elevador e já ia subindo, quando ouvi: - Senhor! Já estava esquecendo. Essa correspondência chegou hoje para o senhor. - Obrigado. Respondi.

Ao passar pela porta de casa, senti um frio na barriga quando percebi que se tratava da resposta da galeria que eu tanto aguardava. Bom, pensei, pelo menos tiveram a consideração de responder. Abri o envelope, tentando conter minha ansiedade e, tamanha foi a minha surpresa, quando vi que minha proposta de exposição havia sido aceita. Aquilo mudaria a minha vida!!! Chorei feito uma criança! Por falar em criança, lembrei de Joana. Parece que tudo em volta de Joana mudou. A própria vida de Joana mudou. Então pensei no que ela disse: "o amor cura".

Às vezes, só precisamos de um pouco de amor para transformarmos tudo.

Até hoje não consegui reencontrá-la.

Seria Joana um anjo?

Pensando nesse dia tão especial e em todas aquelas pessoas ainda mais especiais, me pergunto: será esse dia o Final Feliz dessas histórias? Acho que não. Acho que é só o início de todas elas...

Adriano Soares
Enviado por Adriano Soares em 08/01/2022
Reeditado em 27/02/2022
Código do texto: T7424762
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2022. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.