OS JARDINS SUPENSOS 

                         Carvalho Branco

 

 

                                  A luz penetra no aposento, não respeitando os vidros da janela.

                                  É tarde.

                                   Paira no a algo de quente, úmido, misterioso...

                                   Lá fora, silva o vento. Um gato mia no telhado do vizinho, só, abandonado...como eu.

                                   Tenho frio, entretanto, a camisa fina de nylon cola-se a meus seios suados.

                                   A luz da lua, espreitando-me assim, na intimidade, enrusbece-me... fecho os postigos. Um negro profundo envolve tudo.

                                   Arfa-me o peito, todo o corpo se me estremece em frêmitos de desejo e a boca se afunda no travesseiro, em busca inútil de lábios ausentes, sufocando lágrimas de solidão.

                                   Acendo o quebra-luz. A claridade envolve o quarto, fosca, pálida...

                                   Ajeito as cobertas e torno a deitar-me.

                                   Fito o teto: figuras bisonhas nele se projeta.

                                   Os olhos semicerrados... sinto uma especie de topor...

                                   Estou leve... estou subindo, como sobem as bolas de gás que fogem das mãos das criancinhas!... Estou muito alto... acima das nuvens brancas, cinzas, rosadas...

         

                               ...Há flores, muitas... delicadas, frescas, transparentes... Parecem de cristal, mas são macias... Minhas mão penetram-lhe as pétalas, sem as atingir, como se não as estivessem tocando, como se as flores não estivessem, realmente, ali... ... ... 

                                   Elas não tem verdadeiramente cor, mas eu as sinto brancas...

                                   Pequenos e mimosos cupidos esvoaçam daqui e dali, batendo suas tênues asas, como alegres borboletas brancas, azuis e amarelas cumprimentando as flores em manhã de sol, com travessos colibris beijando-lhe as pétalas...

                                   Eles parecem não me ver, nem sentir minha presença... tudo prossegue como se aqui eu não estivesse...     

                                   ...E eu estou aqui...

                                  Olho-me: engraçado, parece que sou como as flores e os cupidos  - existo e não existo... vejo-me, mas através de mim, vejo os campos floridos que ficaram para trás... as verdes colinas... as estradas nuas... Eu caminho... e pareço não tocar o chão.... não é propriamente voar, é andar no ar! Não preciso seguir caminhos traçados para os seres humanos, posso atravessar pelas flores sem as magoar, sem faze-las sentir meu corpo presente, sem eu própria senti-las sob meus pés ou roçando-se em mim.

                                   Posso sentir perfume, sem haver materialmente perfume...

                                   Eu existo, mas não tenho corpo...

                                   Eu me vejo, mas não sou matéria...

                                   Tudo aqui é essência!...

                                   Nada se altera, tudo é eternamente tranquilo e fresco, sempre novo e sempre velho... Não existe tempo a contar: nem passado, nem presente, nem futuro... apenas há; não se se cheguei há muito ou há pouco... parece que foi agora, mas parece que foi há tanto!...

                                    Neste instante percebo: mais para além, tem uma estrada ladeada de árvores, mas elas não ocultam claridade; aqui há sempre luz, é como um amanhecer risonho: o sol surgindo, principiando a aquecer a terra, o orvalho da noite dando maior limpidez e frescura ao ar e a alegria bailando na atmosfera... assim deveriam ser sempre as manhãs de domingo...

                                   Manhãs de aldeia... um sino badalando ao longe, chamando os fiés para a primeira missa... Um bando de crianças, em algazarra sadia, correndo pelos prados...

                                   Aqui é sempre assim; não se vê o sol, mas é sempre como um amanhecer na aldeia: claridade, pureza, paz, felicidade!

                                   - É sempre primavera!

                                   Ao fundo, no fim da estrada... uma casa... um pálacio, talvez... um homem... não sei, é tudo tão difuso!... Não posso, não consigo perceber ainda, mas sinto, pressinto, que se puder penetrar, é brilhante, resplandecente, ofuscante!...

                                   Aqui é tão calmo!

                                   Deito-me sobre as flores... elas se curvam sob o peso de meu corpo, continuam inalteráveis, como não estando a me sentir!...

 

 

                                   Mas... eu lembro... lá embaixo... eu estava...

                                   Eu vejo:... nuvens...branco...azul... e... lá embaixo... sou eu!...

                                   

                                    Tenho medo... eu caio... depressa, muito depressa...

                                   Não quero cair!...

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          Estou novamente em meu quarto... sozinha: sem amor, sem paz... assim tão só... para sempre... só...