os porcos

A pandemia creio que em muitas pessoas acordou um medo arcaico, antigo, dos primórdios dos tempos, quem sabe o medo coletivo de deixar de existir? Não se trata de um medo indidual, mas algo compartilhado por toda uma coletividade. Mas de verdade mesmo, creio que esteja especulando, talvez esteja falando apenas do meu medo, que era constante, mesmo que no dia-a-dia não tenha tomado tantos cuidados de proteção. Em razão desse sentimento aterrador, resolvemos, eu e Clara passar um tempo no litoral. Não vou dizer o nome da cidade, não sei bem a razão, pode ser medo de alguma reação das pessoas envolvidas nessa história.

Escolhemos um pequeno condomínio de dois andares, os apartamentos eram simples, limpo, de um tamanho bom para duas pessoas. E havia diversos portões ao seu redor, onde ficava as vagas relacionadas a cada uma das moradias. Eram três blocos, sendo que entre eles havia uma grande área, parte cimentada e outra de uma grama verde e bem cuidada. Nos primeiros dias me senti muito bem, era perto do mar, havia tirado uma licença do emprego, de modo que praticamente todos os dias me dirigia pra praia. A areia limpa, de grãos pequeno e redondos, clara e quando o sol estava quente, olhando em ângulos lembrava um deserto, apesar de toda uma parte rodeada por uma pequena mata, que penso eu, era resíduo de uma espetacular mata atlântica. Não me enturmava com ninguém, deitava na praia, vez ou outra levava um livro, e dava a cada 10 ou 20 minutos, mergulhos que me lavava o cansaço e o estresse acumulado.

Em casa, basicamente, assistia filmes, minha mulher aprendeu a fazer alguns pratos novos, que apesar de estranhos para o meu paladar, aos poucos fui me acostumando e via que aquilo fazia bem a ela. Nunca deixava de agradecer e dizer que o prato estava gostoso. Em outros momentos conversámos horas, repassávamos cada um, à sua maneira, passagem de nossas vidas. Não eram eventos estranhos a nós, mas como a experiência cria novos olhos, e só a compreensão cria uma linguagem para expressá-la, recontar o que já foi contado, abre outras forma de ver a mesma situação e muitas coisas, antes obscuras, ficavam mais claras tanto pra mim quanto pra ela.

Outra coisa que fascinava tanto a mim quanto a ela, era a imensa faixa de bicicleta, que a gente usava tanto para passear de bicicleta quanto patinar, claro que o patins era mais a sua arte, eu a acompanhava pra dar-lhe um pouco de segurança, enquanto eu mal conseguia ficar de pé. Se isso me irritava um pouco, por outra recobrava algum sentimentos de alegria, porque naqueles momentos me divertia, e o mundo cada vez mais caótico e tenembroso, meio que se escapava da minha mente, sentia minha respiração fluir e uma espécie de angústia ou medo, sei lá, é difícil saber exatamente o nome de certos sentimentos, mas esse sentimento, ou sumia ou voltava para as profundezas do inconsciente. E aquilo foi nossa rotina por alguns meses. Mar, ondas, patins, bicicleta, barzinho e cerveja no começo da noite. Sentia uma certa amargura em não me interessar em fazer amigos, apesar de ter tido algumas chances, mas logo descartava, medo talvez, ou sabia que nada eles podiam me acrescentar, pois naqueles dias só tinha uma preocupação, me sentir um pouco satisfeito diante da vida, que não era ruim, pelo contrário, fazíamos coisas que gostávamos e morávamos num apartamento que era pequeno, porem, muito confortável.

Então um dia pela manhã, uma senhora estava lavando todas as partes comum do condomínio. Cantava e no seu jeito de quem conhecia todo mundo, cumprimentava com um sorriso audível todos que acordavam e passavam por ela. Aquilo me chamou a atenção porque não me lembrava quando tive uma atitude assim: gratuitamente amistosa e genuína diante de todas as pessoa que passavam por ela.

Passou algum tempo, esqueci do assunto, ela foi para o outro lado do prédio e eu, como faço todos os dias, ouço algumas músicas logo que acordo, Beatles, Caetano, Gilberto, Brenda Lee. Todos antigos, como são antigos quase todos meus gostos. Depois do café eu disse a Clara que iria à praia, coisa que raramente ela faz, se ofereceu pra ir comigo. Gostei da ideia, falou entusiasmada com o passeio. Quanto saímos pela porta percebemos o cheiro gostoso de limpeza, como se fosse aroma de eucaliptos, não só nos corredores, mas em todo entorno dos 3 prédios.

Foi então que eu disse pra Clara. Essa moça deveria limpar o quartinho lá fora onde se põe o lixo, porque fui ontem colocar o lixo nesse local e estava fedendo a azedo. Então a clara disse que ela limpava pelo menos a cada 3 dias, retruquei que estava muito cedo para já estar tão sujo e fedorento daquele jeito. Claro que Clara, sempre impetuosa falou em voz alta: É que aqui tem monte de porcos, não é amor? Fala baixo, caramba! Assim que falei, percebemos que um senhor que estava á beira de uma das janelas do outro apartamentos nos ouviu. Não que xinguei a clara, apenas disse pra ter mais cuidado com o que fala fora de nossa casa. O sentimento que tive no momento foi de vergonha. Algo dentro de mim pedia pra ir lá me explicar, mas outro algo me alertou que só pioraria a situação.

Bom, saímos! E a praia como sempre estava deliciosa, o sol quente me deixou contente, visto que choveu bastante na última semana. Quando deu umas duas horas da tarde a fome bateu, disse a ela pra voltarmos pra casa. Ela de barriga pra cima, com os braços levantados pra trás, tentava bronzear as axilas, pois nada em suas axilas, lembrava a cor belíssima que havia conseguido naqueles dois meses. Comentei com ela sobre o assunto e falei algo engraçado, mas de verdade não me lembro. E ela, que às vezes age como uma criança, riu muito mais do que a graça da minha troça alcançava.

Fomos devagar de volta pra casa, falando da vida, das modelos que acabam virando garota de programa, porque ficam endividadas com as agências, pois as despesas se tornam maior que os ganhos. De como perdemos coisas simples e hoje a única coisa que existe é o dinheiro e claro, ela não podia deixar de dizer: O quanto que as mulheres são excomungadas, é raro um homem querer depois dos quarenta, Sobra aqueles que não são do seu interesse, mas por necessidade mais profunda acaba a vida com eles.

Achava graça das coisas que me dizia, sabia que tinha razão, no entanto, nada é assim, preto ou branco, sempre acreditei que a vida é mais secreta, com dinâmicas e desfecho que foge dessas conclusões mais fáceis e imediatas. Nesse momento chegamos ao portão, abrimos quase sem notar já que ela ainda continuava a falar. Atravessamos o pátio e subimos a escada. E quando chegamos em frente ao nosso apartamentos nos deparamos com um lixo na frente de casa, algo que não era nem líquido e nem sólido, onde uma água azeda se misturava a diversos pedaços de frutas e verduras em estado de composição.

Ela, como todas as vezes que esteve em situação crítica, começou a xingar em tom de ameaça. Acalmei-a, disse: vamos limpar, deixemos isso quieto, vamos limpar e ver o que acontece. Então você limpa. Eu disse, claro, pode deixar. Sabe como é homem, e isso não é preconceito e sim um fato, tem certas coisas que pra gente fazer nos falta agilidade e até vontade. Depois de um bom tempo, consegui tirar toda a sujeira. Havia na ultima compra trazido um desses aromatizante, lembra hortelã, nem lembro, joguei no chão. Ficou limpo e cheiroso. Quando entrei, ela havia começado a fazer o almoço. Quis conversar sobre o fato. Mas eu estava tão irritado e atônito que não respondi nada, peguei a toalha e fui para o banheiro e lá conversei, não com ela, mas comigo mesmo: Que porra foi essa? Foi um absurdo tão grande que não passava pelo meu entendimento e nem pela minha goela.

A clara que gostava de fumar e o lugar de sua preferência era o balaústre do corredor, me perguntou onde estava o cigarro já com o isqueiro na mão. Olhou para o gramado e tomou um susto e correu pra dentro. Mô, assim ela me chamava quando precisa de mim, olha lá fora, havia em no meio do gramado uma gamela, esse termo antigo, é na verdade uma bacia de forma retangular, mas arredondas nas pontas, de madeira, que servia como bacia em outros tempos. Uma gamela gigante. E dentro o mesmo material nojento que haviam deixado em nossa porta. Bem perto, uma pequena faixa escrita virada para o nosso apartamento, onde dizia, a comida de vocês estão prontas, não vão descer pra comer? Ela entrou assustadíssimas e se trancou no quarto. Eu batia, mas no fundo não queria que ela abrisse, porque se ela abrisse ia me pedir pra encontrar uma solução, porém eu estava tão desamparado como ela.

Bati algumas vezes na porta pra mostrar interesse e finalmente desisti. Tranquei a porta e todos as janelas e comecei a procurar coisas, tipo livros, vídeo na internet, pensar em outra coisa, mas minha angustia que havia dado uma baixada quando cheguei pra cá voltou ao mesmo nível. Não conseguia pensar direito e a única coisa que pude fazer foi pegar o tapete que ainda estava num lugar provisório e colocar no meio da sala e me deitar de barriga pra cima, tomado de desespero mas acreditando que aquela sensação fosse passar. Pois me havia agora duas preocupações, aquelas coisas estranhas que estavam acontecendo e mais as reações da Clara, que quando se encontra no limite perde a razão e poderia ser perigoso ela descer e querer tomar satisfação e piorar bastante as coisas.

No outro dia, já meio constrangido, de cabeça baixa, lembrei da fala da clara no dia anterior. Que ela dizia que todos ali eram porcos, amarrei os pontos e de repente, meio que me veio uma luz. Eles se ofenderam e estão devolvendo o insulto nos chamado de porcos. Era tão óbvio, só precisávamos ir em cada um dos apartamentos e pedir desculpas, convencer aquelas pessoas que falamos sem pensar, uma fala sem propósito que não fazia jus a realidade. Apesar de achar essa solução viável, no fundo me sentiria constrangido fazendo uso, e por outro lado era confirmar que a reação deles foram proporcional ao insulto, se é que pode dizer que foi um insulto. Mesmo assim, propus a Clara que rechaçou de imediato. E ainda completou, se você não tem amor próprio eu tenho, não me venha me contaminar com essa sua covardia.

Fiquei calado, não porque concordei com ela, mas pra não por mais fermento no bolo, já que estava já bastante grande. Então a convenci a dar uma volta. Não queria ir na praia, desanimada, me respondeu. Você precisava fazer umas compras? vamos lá, isso pode te relaxar um pouco. Na volta podemos passar naquele restaurante de esquina e tomar uma cerveja pra relaxar. Se afundou um pouco dentro dela, de modo que o mundo aqui fora não estivesse seguro, deu uma boa suspirada, os olhos ficaram inquietos, vaguearam por toda a sala, perguntou se ainda tinha café. Sobrou um pouco.

Fui até a garrafa e a servir. Então mais calma, deu um pequeno folgar na boca, mas não formou um sorriso e disse, sim, vamos comprar meus produtos de beleza, está faltando suco para nossos suplementos, além daquele secador que você disse que eu podia comprar esse mês, há, já ia me esquecendo, posso finalmente fazer a matrícula na academia já que esse mês estamos mais folgado?

Não estava tão folgado, mas a deixei comprar o que queria e fazer a matrícula na academia.

Descemos a escada rápido, sem olhar para os lados, meio que incitados, foi como dar um salto da nossa casa até o portão, e a fechadura era antiga e estava sem óleo, não sei como fizemos, mas num espécie de salto tanto no tempo como no espaço estávamos do lado de foram.

Fomos em todos lugares que ela listou, inclusive na academia, comprou tudo que queria, pareceu contente e, pelo menos naquela experiência, pareceu esquecer as esquisitisses que nos assustavam.

Logo perto da casa paramos num barzinho simpático que fica na esquina, Pedimos uma cerveja, alguns petisco, demos algumas risadas, inclusive da situação. Ela parecia relaxada e isso me relaxou também. Pegamos um na mão do outro, e concordamos em não ligar, que levaríamos isso na brincadeira, e ainda mostrei e ela como entendia as dinâmicas de loucuras como essas. Se você não se abalar, não se incomodar e não tentar revidar, a própria energia daquela ação é retirada, então eles param, porque percebem que não há ninguém para se vingar, se divertir às custas, ou mesmo assustar.

Apertamos forte nossas mãos de um jeito que demonstrava um ao outro confiaça e também conciliação. Tomamos uma três cervejas, não ficamos bêbados, ficamos como a gente gosta, inebriados, quando a bebida apenas mostrou seu lado prazeroso porque não permitimos descambar para embriagues. Deixamos o carro na garagem, que ficava um tanto afastado de nosso apartamento e quando passamos com as comprar, um auto falante gigante, nunca vi um igual, soltava um som que não havia como nos enganar sobre ele. Muito alto e carregado daquelas interferência que acompanha qualquer desses modelos antigos, um chiado que lembrava um apito desafinado, e uma constante palavrinha: oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,

Estava tão alto que nos doíam os ouvidos. Em cada porta os moradores nos olhavam e davam umas risadas diabólicas, como também tão fina como as vozes reproduzidas dos porcos. Pensei em um guarda-chuva para nos proteger, mas a coisa não vinha de cima, vinha de todos os lados. A Clara subiu chorando muito alto a escadaria que dá acesso ao nosso apartamento. E antes de nosso apartamento estava a Paula, uma moradora que a Clara havia adorado em conversa alguns dias antes.

A Paula estava com um nariz de porco e fazia junto com o auto falante o som estridente que imitava o porco. Com isso, a Clara deu outro grito, vi que seu coração vinha à boca, tanto de medo quanto pelo seu inverso, a raiva, pois bateu com toda a força na porta. Quando cheguei poucos minutos depois, ela estava em baixo da mesa, com uma das mãos em cada ouvido, e balançado a cabeça para frente e para trás, numa atitude que lembrava alguma coisa de esquizofrenia, no sentido de boiar numa realidade profunda onde ela não sabia separar o que era real e o que era insanidade.

Empurrei a porta, tranquei com as duas chaves, e entrei em baixo da mesa e fiquei ali, não disse nada, apenas deixei que ela fosse o que fosse naquele momento. O chão estava molhado, uma água que ora parecia lagrimas, ora, a baba que não parava de descer da sua boca. Depois de bem uns 90 minutos ela saiu. Estava recomposta, pelo menos na aparência, embora os olhos vermelhos e inquietos revelava uma grande atribulação interior.

Vamos chamar a Polícia, já chega! Então, de forma terna, genuinamente terna, pois compreendia o perigo que ela sentia estar perto, falei de forma pausada: Vamos falar primeiro com a dona do condomínio. Ela mora há uns 20 km daqui. Expomos pra ela o problema. Como ela é dona, e uma das cláusulas do contrato que ela firmou com a gente, que creio que seja pra todos, é que a qualquer momento, ela pode pedir o apartamento, logicamente dando um prazo pra pessoa procurar outro lugar.

Esperamos a noite chegar. Estávamos muito assustados para sairmos durante o dia. Na casa de Marcele, uma rica senhora francesa que veio para Brasil e acabou casando e herdou uma série de móveis que agora alugava e esse era seu ganho de vida, na verdade tem algumas dezenas desses empreendimentos que ela explora alugando-os.

Na frente da sua casa, pedi para a Clara enxugar o rosto, passar alguma maquilagem e se manter calma, então bateremos na porta. Nem precisou bater, a Marcele estava sentada na varanda, fumando um cigarro de aparência cara e tomando um taça de vinho. Olá, Marcele. Olha só, que bom ver vocês? Meus novos moradores, mas o que passa? nunca achei que viria na minha casa.

Então contamos-lhe tudo. Então deu um gole no seu vinho que tinha um cheiro alucinante, tragou seu cigarro, deu uma pausa de alguns segundos que nos prenderam na espera de uma próxima declaração. Desculpe. O que vocês estão falando é muito sério. Tem gente ali que mora no condomínio há mais de 10 anos. Um senhor, seu Lear, um do bloco 1, apartamento 6 mora ali há mais de 15 anos. Quando vou lá fico encantada com o cuidado que eles tem com o condomínio, a limpeza, a responsável nas contas e nas obrigações. Perdão, sei que...sei o que? interrompi. Sei que parece uma coisa, mas creio que seja outra. Não são eles com certeza. É alguém de fora que estão fazendo isso com vocês, conheço-os. Não ponho a mão no fogo, mesmo porque acho desnecessário. Vocês fizeram alguma ultrapassagem perigosa pela cidade? sem querer algum de vocês olharam para alguma mulher ou homem comprometido? Ofendeu algum desconhecido. Não creio que vocês faria isso, apenas quero ter outra alternativa, porque essas coisas que vocês me falaram, não faz nenhum sentido. Precisava de uma prova. Não me parece certo ir até eles perturbarem com essa história.

A Clara, incrédula, quase sem ar: eles estavam gritando junto com o auto falante, outra senhora colocou um nariz de porco, o que você quer mais. Sabe, Clara, é Clara, não é. Diante de algo tão avassalador como a história que você me narrou, vemos coisas que completam a história ou a completamos para a história se enriquecer de sentido e de verdade. Sou psicóloga, há 35 anos sou psicóloga, e vi muitas pessoas com a vida e família estruturada fazer da própria imaginação seu grande inferno, eles não dão conta disso, e se dão, não conseguem parar. O que posso te dizer é que amanhã vou lá conversar com as pessoas do condomínio e depois te procuro no seu apartamento.

Saímos decepcionados, no caminho de casa não falamos nada e o silencio tomou conta da gente. A única coisa que Clara disse era que, se a coisa continuasse, tínhamos que dar um jeito e procurar um outro lugar. Tomei-a nos braços e a abracei e não falamos mais nada naquela noite.

E como prometido, ela realmente veio. Nos demos conta logo quando ela chegou. E ela entrava em cada um dos apartamentos, demorava um tanto, depois passava para outro. E assim ficou durante umas 3 horas, não ficou um único apartamento que ela não tenha entrado. E a demorara em cada um era suficiente para uma boa conversa.

Então ela veio em nossa direção. Seu sorriso chegava primeiro. Era uma mulher muito calma, serena, havia algo nela que diferenciava das outras pessoas daqui. Havia nela uma força como se existisse mais que os outros. Subiu vagarosamente a escada até nos alcançar perto da porta. Posso entrar? Claro, fique a vontade, ela mesma pegou um banco desses de praia e pediu pra gente sentar no sofá e foi direta: Então, conversei com todos eles. Percebi que eu estava certa, eles não tem nada a ver, saberia se estivessem mentido, sou psicóloga, lembra? esse é o meu trabalho. Se caso acontecer novamente, melhor chamar a polícia, o que eu podia fazer eu fiz. Sem um prova concreta, não posso expulsar ninguém daqui. Bom, preciso ir, porque tenho muita coisa que precisa da minha atenção hoje.

Mal abrimos a boca, demos-lhe a mão e ela desceu com um jeito de quem cumpriu uma grande missão. A gente ficou na mesma, entramos em nossa casa e nos trancamos, procurei não pensar no assunto, pelo visto a Clara também, que passou a tarde inteira vendo extravagância na internet. Apenas à noite, decidimos que era bobagem chamar a polícia, não nos daria atenção, não investigaria com verdade, ia fazer para os moradores as perguntas de praxe, que logo seria negadas e concluiriam que era alguém de fora que agia por vingança e ia nos aconselhar a ter cuidado, talvez pedisse pra gente voltar para nossa cidade.

Essa percepção de como as coisas aconteceria, não saberia explicar, mas nos deu um alívio. Bem que seja estranho, estamos diante de uma situação de ameaça direta ou velada, sozinhos, porque sabemos que ninguém acredita na gente e mesmo assim, ficamos tranquilos. A clara só não falava mas seu semblante já resgatara um pouco de sua vitalidade, não estava alegre, nem triste, apenas sóbria e isso pra mim já era um grande consolo.

No dia seguintes acordamos calmos, estranhamente não sentíamos medo, no fundo sabíamos que haveria alguma outra presepada. Enquanto tomávamos café, a Clara procurava uma outra casa na internet. O que você acha dessa? Deve ser cara, tem piscina e é no centro, região mais cara da cidade. E essa? muito pequena, me sufocaria ai dentro, sabe que gosto de um mínimo de espaço. E logo emendei, vamos esperar mais uns 3 dias, pode ser que paramos de ter medo porque a coisa acabou, pode ser que a visita da dona do condomínio, mesmo eles negando, ficaram com medo de prosseguir. É, você pode ter razão, mas só 3 dias, se nada mudar, vamos procurar um lugar que tenhamos paz e privacidade. Combinado.

Paramos de frente à porta, eu e ela, olhávamos para a fechadura, nem eu nem ela tomávamos iniciativa de abrir a porta, então os dois fomos ao mesmo tempo, demos risada, me adiantei e destranquei a porta. No balaústre, vimos lá embaixo, uma piscina gigante, cheio de uma lama negra, aparentemente apodrecida e uma faixa. "vocês devem saber que porcos não suam, então estamos doando a vocês uma vantagem pra se refrescar. A água do mar não é para porco"

Não vou dizer que fiquei impassivo, os dois nos afundamos em nós mesmo. Ela voltou pra trás, sentou no computador e voltou a procurar uma casa. Exausto e entediado resolvemos sair, dessa vez, sem rumo, meio que vazio de pensamento e de qualquer sentimento. Eu me sentia um autômato programado apenas para andar, sem que o destino fosse importante. Obrigatoriamente tivemos que passar perto da lama, não fedia, parecia fresca como essas que se usa nos tratamentos de beleza. É certo que Clara não é muito disso, nas fez uma pequena brincadeira. Se fôssemos porcos pelos menos seríamos bem tratados. Eu ri, mas sem vontade, sem alma, sem nada, somente a boca se abriu e a garganta soutou algum barulho sem qualquer sentimento.

Finalmente, depois de andar bastante, nossas pernas doíam, estava com sede, perguntei se ela queria beber alguma coisa. Ela concordou e a única coisa que falava era onde arrumar um carro para mudança e também falou do trabalho de embalar tudo de novo. Deu tanto trabalho desembrulhar as coisas! Pedimos uma cerveja e depois outra, e outra e assim, ficamos no bar até quase 10 da noite. Quanto mais bebíamos mais queríamos beber, minha cabeça era um vão sem sustento, nenhum pensamento tinha alguma força pra perdurar e era a mesma coisa que eu via na Clara.

Então vi que falávamos sem parar, porém, coisas sem sentido. Quando ia ao banheiro ia segurando nas mesas e logo depois nas paredes do corredor que dava acesso ao banheiro. Num determinado momento , alguém me chamou porque a clara estava caída dentro do banheiro, uma moça veio avisar. Eu fui ao seu encontro, não sentia minha pernas, apenas a realidade que parecia ter se transfigurado num grande balão de gás, que vazava e eu fazia disso uma diminuição do meu próprio equilíbrio, Clara no chão, uma risada medonha, meio demoníaca, mesmo na minha condição, um frio me correu pela espinha. Tentei tira-la do chão, mas não havia força, não havia solo, somente um peso que se somou ao peso da Clara e os dois despencamos do chão e apagamos. A partir desse momento não me lembrei mais de nada.

Em casa, intuímos que alguém do bar nos trouxe pra casa. Na mesa da cozinha, um bilhete, dizia para bebermos com moderação e que amanhã, que na verdade seria hoje, teríamos que retornar ao bar para pagar a conta. Os dois estávamos envergonhados, inclusive pra gente mesmo. Que papelão! diria meu avô. Que vergonha! minha mãe. E todas essas vozes do passado se juntavam ao meu próprio julgamento me torturou durante toda aquela manhã.

Os dois sentíamos fracos, sem vontade, mal tomamos café, e voltamos pra casa, e aquela sensação de irrealidade prosseguia tanto pra mim quanto pra ela, estávamos os dois desprovido de nós mesmos, os dois numa mistura de aqui e ali, mas que não encontrava um ponto onde a gente podia se reconhecer. Meus pensamentos eram desordenados, não me sentia como eu, e certamente, a Clara estava também próximo a uma despersonalização. Dizia frases inacabadas. Na hora do almoço comemos uma sobra do dia anterior que não tivemos força para esquentar. Não mastigávamos, esperava a comida molhar e amolecer na boca e elas mesmas desciam pela garganta de forma automática.

Num esforço monumental consegui dar um jeito na casa, porque parecia que houve uma briga insana, pois tudo estava fora do lugar. Ainda que nesse estado, abrimos a porta, dessa vez sem nenhuma dúvida e lá embaixo estava de novo, de novo algo perturbador: Uma piscina gigante, o que de longe lembrava lavagem, uma água rala, coisas aparentemente apodrecidas flutuando na superfície e outras se acumulando no canto da piscina.

Ficamos os dois olhando para aquela coisa. A Clara atrás, pálida, como se não tivesse comido há dias, além disso emanava dela uma mensagem estranha, indecifrável que não me lembrava mais ela, mas outra coisa que não conseguia dar um nome.

Fomos os dois para frente do corredor. E ficamos olhando aquela piscina gigante, só depois vi a faixa, dessa vez mais modesta, como se o que estava escrito ali fosse apenas um protocolo porque já sabíamos do que se tratava.

Nessas condições, algo irresistível me empurrava lá pra baixo. Como um chamado, um instinto, eu tentava afugentar os pensamentos, mas isso só aumentava essa coisa que me atraia. Os olhos da Clara estavam estatelados. Não falava nada, quando em questão de instante ela desceu, como se estivesse dormindo, sonambula, hipnotizada, qualquer coisa serve. Desceu o primeiro lance da escada. Nesse ponto fui atrás dela, mas aquela força aterradora continuava dentro de mim. A Clara desce lentamente o segundo lance, eu a alcanço. E a sinto também que ela também está sendo puxada para aquela piscina. Não havia ninguém no pátio pra assistir aquilo, somente a estranheza tínhamos como companhia.

À beira da piscina, que de perto chamo de piscina de lavagem, ela colocou a mão naquele coisa, apanhou um pouco e levou ate a boca. Algo me fez fazer a mesma coisa, ela riu, tive medo da risada dela, assim como estava com medo de mim mesmo. Sabia que o que ela fez e o que eu fiz era loucura, foi a bebida, pensei, foi o estresse. E nessa sucessão de pensamento ela pulou dentro da piscina e para salvá-la também pulei, e como se perdêssemos a consciência humana, eu a vi dando bocadas naquelas coisas, então como se uma mão pegasse minha cabeça e me empurrasse comecei a comer também.

Comíamos violentamente e ela comia e fazia barulhos estranhos. Um grande peso se abateu sobre minha alma, cada vez que comia aquilo, tinha mais vontade, e algo me dizia que o gosto era bom, eu rechaçava mas não dava pra parar. A Clara foi para o canto onde havia algumas abóboras, pedaços de laranja, tomate, e ela devorava de forma voluptuosa como se comesse um banquete.

Por um impulso estranho mergulhei fundo e sai perto dela, quando olhei pra ela estava sem roupa, nem de longe lembrava a minha Clara, sua cor estava diferente, E seu rosto estava muito diferente, não sabia se era ela ou era eu que havia enlouquecido. A água, devida ao dia claro, refletia meu resto. Havia uma alteração e confirmei que eu, definitivamente, havia perdido o sentido. E terrivelmente amedrontado, perguntei pra ela: quem é você? então, ela respondeu: oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,oinc, oinc, oinc,