olhar feito ou, talvez, menino feito

Menino Feio

Era feio, uma criança muito feia. Deus me livre falar assim de uma criança. Mas fazer o quê. Se for pecado levo pra Deus. Mas se a verdade

É essa, não posso também mentir. Pra Deus, deve ser pior. Acho que até o pai tem vergonha. A mãe não leva a lugar nenhum. E olha que já ta grandinho. Porque eu vou achar bonito, porque eu vou mentir. Enganar o pobre. Melhor crescer na verdade, pelo menos já sofre desde cedo, não vai levar essa ilusão pra vida toda. Já pensou, crescer e não conseguir uma namorada, ou não ganhar um sorriso, um emprego e ficar perdido sem saber o porquê? Seria injusto com o pobre. Então é melhor já tratar como é, Com indiferença, não dar muita atenção. Porque a pior coisa dessa vida é crescer enganado.

Você viu os filhos de Joana, que coisa linda, as meninas parecem de porcelana. E o mais novo, aquele de cabelinho deitado, andando de bicicleta na praça, é lindo. Da vontade de ter um daquele. Se algum dia tiver um filho, quero assim, um menino aliviado. Mas esse, olhar já é martírio. Os de Joana da prazer de ficar perto, os olhos brilhantes.

Quando eu for ter um filho, queria escolher igual num restaurante. Escolher os olhos, a boca, o jeito da cabeça, até a inteligência da criança. Não deixar nada escapar. Tenho muito medo de ter um. Vai que vem um troço sem jeito, que não agrada ninguém. Um que pra sair na rua tem que esconder a cara. Deus que me defenda. Imagina as visitas chegando pra ver e todos dizendo que gostou e eu sabendo que é mentira. Sabe que nessas horas o filho pode ser um sapo, mas tudo mundo inventa uma coisa boa. Como se fosse possível enganar alguém.

E no dia que ela me pediu pra levar o coitado no médico. Oh vergonha que passei, não tinha onde enfiar a cara. Como devia favor não podia negar. A pior coisa desse mundo é dever. A gente fica presa e não pode agir com honestidade com a pessoa. O menino corria e eu falava: Pára, menino! Vou contar pra sua mãe se você não se comportar. E tinha que o tempo todo está alertando que não era meu filho. Imagina, isso. Cada vez que alguém chegava eu tinha que me explicar. O médico chamou ele de garotinho fofo. O bichinho se agitou, não está acostumado com esses tratamentos. Fiquei até com dó do danado. Quando riu sabe que ficou até engraçadinho!?

Só médico mesmo, gente de Deus, pra tratar bem sem precisar. Gosta de agradar né? Deve ser coisa da profissão. O bichinho pegou aquele troço de colocar no peito, nem sei o nome, aquele de testar o pulmão, e ficou medindo o batimento do homem e ele tolerando. Cada uma! Em tempo de quebrar e dar um prejuízo pro hospital. “Ele só precisa de atenção e o peito vai melhorar”. “Ta bom doutor vou falar pra mãe dele, eu sou só a tia” Disse e recebi uma cara de frieza. “Criança gosta muito de brincar, de correr, de passeio. É isso que vai fazer o peito dele melhorar. O xarope é só uma emergência”. Olhava com cara de merda como se eu fosse a mãe. Como se eu tivesse culpa do diacho estar naquele estado. E eu tive que agüentar. Essa gente pra deixar você lá em baixo nem precisa se esforçar.

Passou um remédio pra febre e mandou ficar no corredor esperarando o efeito. Ficamos no banco. Uma pressa de chegar em casa, já estava com fome. Pegou os brinquedos de outra criança. As duas começaram a se divertir . O povo olhando e gostando. Gente doente esperando pra consulta. As caras mortas e sem noção. Gargalhavam quando o outro puxava o carrinho. Os dentinhos corroídos apareciam pra fora. Se pudesse tapava a boca dele e mandava se calar. Eu queria sumir dali. O outro, o menino dono do carrinho, parecia o filho de Joana. Era bem cuidado, dava pra ver... os dentes limpos e a roupa bem passada, a unha cortada. O menino já é feio, mas com aquele descuido fica pior. Não da pra consertar cara de ninguém, nasceu daquele jeito, pronto, fazer o quê. Mas com sujeira é difícil até de ficar perto. E meu constrangimento foi pior ainda.

E o médico era bonitão, menina! Gente que estuda parece que é mais bonito que os outros . Fiz de tudo pra chamar atenção dele. Deve ter o rei na barriga. A gente fica sem jeito perto desse povo bonito né? Aqui no bairro não preciso nem me esforçar. Sou cantada desde que desço do trem até entrar na minha rua. Aqui eu sou a rainha.

Ele veio depois no corredor, pegou no colo dizendo: “Dá um abraço no tio”. Deu um beijo na bochecha do moleque”. E liberou. Não me deu o mínimo de atenção. Pra ele ali, só o menino existia. Vai entender, deve ganhar pra ser simpático.

Na saída, a mãe do filho bonito mandou presentear com um carrinho. Eu deixei. Eu fui simpática. Essa gente repara nisso. Todos viram como eu ajudava aquela criaturinha. Segurei na mão dele e sair com o dever cumprido. Passei até a mão no cabelo. Só espero que não me peça nada disso de novo e que pelo amor de Deus, que coloque logo esse menino na escola....