Quem vive e quem morre (janeiro de 2021)

É como uma roleta de cassino. A esfera cai na roleta e a sorte está lançada. O paradeiro da esfera é impossível adivinhar. Pode estar nos números pares e nas cores vermelho ou preto. A esfera salta enquanto a roleta gira rapidamente. Os números estão organizados aleatoriamente, o que dificulta ainda mais prever onde vai parar.

Não é difícil adivinhar que estou falando da doença da pademia, a Covid -19. Do outro lado da rua, em um sobradinho, vive Cecília. E como temo pela sua vida. Nesse momento de confinamento, já no décimo mês, conseguimos chegar vivos. Mas o vizinho do meu lado da rua, ao lado de meu edificio, não teve a mesma sorte.

Álvaro sentia-se mal havia um mês e me falou do incrível estado gripal quando me abordou na rua. Os dois de máscara, ele lacrimejando. Isso já faz três meses. Pois foi essa gripe que nos levou ele. Não nos vimos mais e um parente que revirou sua agenda de telefones ligou para mim duas semanas após eu ter visto Álvaro na rua. Morto.

Ó medo de que Cecília não escape dessa! Assim como eu, ficamos em nossas casas durante o confinamento. Ela, nem imagina que estou de vigília a partir de minha janela. Quanto me sinto seguro, utilizo um binóculo para vê-la através das cortinas abertas. Sei que é professora, já nos falamos antes, mas não posso dizer que somos amigos.

O amor exsuda na pessoa amada. Lentamente. E lá está ela, distraída, olhando pela janela observando o movimento da rua. Está descalça, vê-se isso pela posição em “4” de suas pernas, apoiada no chão apenas com um dos pés. Também é um amor sua camisa cansada de ser lavada e agora de uso doméstico. É uma malha rasgada.

Esta noite não dormi bem. O fantasma de um vírus pondo de cama Cecília era um pensamento recorrente. Doce Cecília, cercada de enfermeiros em uma seção ambulatorial de algum hospital. E se tivessem que intubá-la? Quanto sentimento para minha pombinha graciosa... E eu não conseguia dormir.

No outro dia de manhã decidi caminhar na praia, fazer algum exercício, nutrir-me de vitamina D. Assim que pus os pés no calçadão da praia dei de cara com o irmão de Álvaro, irmão do meu vizinho que sucumbiu na luta contra a Covid -19. Seu sorriso era de culpa para cima de mim. Como se eu tivesse culpa de estar vivo e seu irmão não.

Pensei no que dizer, caso me interpelasse. Será que o falecido respeitava o distanciamento? Usava mesmo a máscara em todas as situações? Lavava as mãos com frequência? E álcool em gel? Esta eu sabia ser a ladainha saudável da OMS. Aí me lembrei de que Álvaro era bolsonarista. Mas será que por isso quiçá não se cuidara?

Já havia visto levas de inimigos das máscaras correndo no calçadão da praia no começo do dia e ao findar da tarde. A maioria garotos em seus vinte anos de idade. Estes, creem ser os predestinados. Nenhum mal adviria de seus exercícios enquanto desmascarados? Não lembro de Álvaro caminhar na praia, e da última vez que o vi estava de máscara.

O irmão dele caminhava mas não dava sinal de aproximar-se, então acenei com a mão e pus-me a caminhar sozinho. De olhos fixos no chão, perdendo o expetáculo do pôr-do-sol, segui até a metade do caminho. Andava como se contasse as pedrinhas portuguesas do calçadão. Para cada pedrinha, uma morte no mundo devido ao novo Coronavírus?

Importante era a sensação de abrir distância entre o irmão de Álvaro e eu. Eu refletia: como é que eu teria culpa por me ter salvado dessa terrível doença enquanto Álvaro havia perdido a luta contra ela? Senti profunda simpatia por Álvaro, um bom homem. Mas essa doença é mesmo imprevisível. Não se sabe a quem vai atingir primeiro.

Lembrei-me de Cecília. Pensei nas diversas oportunidades que fantasiei de encontrá-la enquanto eu fazia exercícios na praia. Pensei nas palavras, gestos de surpresa por tê-la encontrado ali, e sorrisos. Contudo, a jovem Cecília, jovem de trinta, não caminhava na praia. Ao menos não nos horários em que eu pudesse encontrá-la.

E onde estava Cecília? Soube inquirir discretamente ao porteiro do meu edificio, que conhecia tudo o que acontecia na rua, que Cecília vivia com uma criança, filha de sua irmã mais velha, que por sua vez não tinha condições de proporcionar-lhe o sustento porque morrera. Fiquei surpreso. Jamais vira outro hóspede através da janela de Cecília.

Vendo minha estupefação, o porteiro acrescentou que a criança havia chegado lá há apenas uma semana e que dormia nos fundos do apartamento, no quarto que dava para a outra rua. Parecia com Cecília, o menino! Uma criança de cinco anos de idade e olhos grandes e castanhos, assim como os cabelos cacheados.

O porteiro achava que a criança tinha o mesmo jeito de encarar de Cecília. Pareciam mãe e filho. Eu, cá do meu lado, senti-me incomodado pelo fato do porteiro saber mais de minha Cecília do que eu. Ao que parece, a esposa dele, que era faxineira na casa de Cecília, contou-lhe tudo.

Lembrei-me da roleta do cassino, aquela em que uma esfera rola e cai em algum lugar inesperado. Acordei para lembrar-me do fato amargo de estarmos atravessando uma pandemia. E no meio disso tudo, Cecília recebe uma criança cuja mãe morrera. Suspeitei que alguma coisa ia errado no que me dissera o porteiro.

Precionei seu Oswaldo contra o muro. Não foi difícil arrancar a verdade do porteiro. Sua esposa lhe disse que a irmã de Cecília era mãe solteira. Por isso deixar o menininho com a tia. E eu quis mais. De que falecera a mãe do menino? Ele não sabia, porque falecera “de um mal que não se fala o nome”.

Seria o mal da roleta? Aquele que não se sabe muito bem onde vai cair? Seu Álvaro foi uma vítima da Covid -19, isso sabia com certeza. Mas em relação à irmã de Cecília teria que ficar com a imaginação. Morreu de quê? E saber isto teria alguma importância? Não! Morreu de um mal incógnito. E estamos vivos para pronunciá-lo e lutar contra ele.