A Luz de Velas

Eram obrigados a vivenciar mais aquele momento e por isso se encontraram a luz de velas.

Não era um encontro marcado e ambos não queriam estar ali, mas era necessário que estivessem juntos, mesmo sabendo do terrível dia que teriam pela frente dali em diante.

Quando o rapaz chegou, procurou pela moça e pelo homem que a acompanhava. Ela se encontrava em uma grande sala, uma galeria, em passiva e nostálgica solidão. A solidão da perda. O homem, pai de ambos, a sua frente deitado em um caixão.

Buscando dizer alguma coisa ou fazer graça no momento e lugar mais inapropriados possível perguntou se ela se lembrava da coruja. Claro que se lembrava. Como esquecer aquele canto que lhe assombrou a alma no dia em que o pai foi internado depois de sofrer um AVC? Achava que nunca mais, na vida inteira, teria paz quando visse aquele bicho agourento que piou em seu telhado trazendo o pressagio que todos sabiam, mas que não queriam acreditar: que ela trazia o anuncio da morte. Fez que sim com a cabeça e com os olhos marejados de lagrimas que mais parecia pedir um abraço, mas temiam quebrar o silencio.

Recordava ter ligado para o irmão no dia posterior ao incidente, relatado o laudo médico e a aparição da coruja. Nos quinze dias seguintes a internação o assunto do animal tinha se tornado proibido, lacrado em um pacto silencioso que só agora podia ser quebrado. Precisavam ter esperanças, mesmo quando os médicos diziam que o quadro era estável e que isso para eles era um mau sinal.

Obviamente não desejavam a morte do ente querido, mas sentiam a angustia da ansiedade de infelizmente saber que aquele era só mais um dia de muitos que viriam sem resultado. Sem resultado de morte e sem resultado de vida. Estável. Diferente da vida dos irmãos que tinha se virado de pernas para o ar nos últimos dias, frágeis até mesmo ao toque do telefone. A única certeza que tinham quando se deitavam para dormir é de que ainda estavam vivos. Até quando? Tem-se maior certeza da brevidade das coisas e sobre o valor da vida quando flertamos com a morte.

Novamente o rapaz formulou uma pergunta, quis saber a quanto tempo a irmã e o pai tinham chegado ali. Ela respondeu sem nem ao menos perceber que o corpo tinha chegado a cerca de dez minutos antes dele.

Estranhou ter ouvido aquilo da irmã: o corpo! Não era a primeira vez que tinha ouvido aquilo naquele dia. Tinha passado a manhã quase inteira correndo com os preparativos para o velório e funeral assim que soube do ocorrido. Tendo que tomar providências mergulhou em um transe que o tornava indiferente a tudo e só voltou à tona da sensibilidade quando ouviu desconfortavelmente a mulher do necrotério se referir ao seu pai como “o corpo” e depois quando teve que fazer as escolhas do caixão e arranjos.

O homem, denominado “o corpo” era considerado tantas outras coisas. Era o querido amigo, o simpático vizinho, o exímio funcionário, o fiel esposo, provavelmente seria o vovô carinhoso, e muitas outras coisas, quase inumeráveis. Para ele simplesmente era e é (jamais deixará de selo) o amado pai.

Tendo a chama das velas como testemunhas da dor que sentiam, saiu de suas alegres e saudosas lembranças quando começaram a chegar os “convidados”.

Todos pareciam se sentir na obrigação de falar alguma coisa, sem saber que naquele momento um abraço, um olhar diziam mais do que tudo, tudo o que as palavras podiam expressar.

Falaram que sentiam muito, perguntaram se podiam fazer alguma coisa pra ajudar, interessaram-se pela saúde de sua mãe e quiseram saber se precisavam de dinheiro “porque essas coisas vem assim sem avisar e pegam a gente desprevenido”.

De tudo o que falavam, o que mais ouviu era que precisava ser forte e sabiam como estava se sentindo.

Como poderiam saber? Como entender o que seria a vida dali em diante? Cada futuro instante de alegria e felicidade seria incompleto porque não teria o pai para compartilhar. Como saberiam o que seria a vida sem vê-lo sair do banho parecendo que tinha trombado com um caminhão de perfume no corredor? Como explicar, aos interlocutores, que ele jamais veria o pai fazer uma bagunça na cozinha, acordar a todos com um abre e fecha de portas e armários e depois disso surpreendê-los com um delicioso doce de banana, uma maravilhosa moqueca de peixe ou uma indescritível torta de bananas? Seriam sabores que nunca mais provaria, pelo menos não de suas mãos.

E o que dizer do “tem que ser forte”? Tinha que ser e fazer tantas coisas e não tinha animo para nenhuma delas. Tinha que resignar-se na dor. Tinha que se cuidar. Tinha que se conformar. Tinha que procurar entender os desígnios de Deus e aceitar que seu pai ou voltaria para os braços de seu Criador ou viveria outras vidas. Tinha que ter fé e esperanças de encontrá-lo um dia, não sabe onde, nem como. Tinha que suportar e ouvir pacientemente comentários do porque acender velas e rezar a “Ave Maria” e se o pai tinha lhes deixado alguma coisa, como se ele e os irmãos estivessem desesperados para brigar por fortuna.

Com certeza e se tivessem sorte, os ali presentes jamais saberiam como ele se sentia.

Certeza, naquela hora, apenas uma, a de que ele, a irmã e os outros familiares precisavam se consolar.

Permaneceram, os filhos do morto e a viúva, silenciosos frente á seu corpo, tendo sua ausência como companhia e o peso e cumplicidade de que aquele dia nunca seria esquecido.

Iluminados pela chama que parecia querer se extinguir ao sopro da mais fraca brisa.

Imóveis a luz de velas. Velas postas lado a lado em castiçais metálicos. Velas que poderiam estar presentes em um jantar romântico. Infelizmente era um velório.