A história de meu avô materno

João Martim Iurk

João Martim Iurk, um descendente de alemão, fixado numa

Colônia de Imigrantes no município de Palmeira-Paraná, era meu avô materno!Ali na pequena vila, famílias de russos e alemães dividiam os poucos recursos da época. Eram homens e mulheres corajosos, desbravadores daquelas terras ainda tão brutas. Sob suor, coragem e determinação enfrentaram as durezas daqueles dias, apoiando-se mutuamente. Afinal eram todos como um só povo, uma só nacionalidade.

Sétimo filho de um total de onze, João Martim conhecera desde cedo as agruras da vida, que viria ainda a se estender por um bom tempo.

Casara-se bem jovem com uma moça da família Kanitz, também imigrantes alemães, moradores da Vilinha, um lugarejo próximo à Colônia.

Minha mãe fora a primogênita do casal Iurk, sete no total.

De pouco, ou nenhum conhecimento e estudos, algo para eles totalmente fora da realidade. Meu avô abraçou a profissão de carroceiro. Transportava toras de madeiras para os municípios próximos por estradas precárias, o que era ainda mais penoso. Mas era o que tinha, era dali que viriam os poucos réis que receberia pelo trabalho.

Minha avó bordava muito bem, e assim fazia belos panos de pratos e toalhas, daquelas que antigamente as donas de casa colocavam na parede, geralmente com dizeres otimistas, ou citações bíblicas e as vendia para as senhoras mais abastadas. Algumas das freguesas eram as esposas do dono do Armazém de Secos e Molhados, da Serraria ou da Hospedaria do lugar. Assim vovó ganhava um dinheirinho a mais, e ajudava nalgumas coisas.

Contava minha mãe com seus doze anos e sendo a filha mais velha, era o braço direito de vovó Cristina para todos os serviços possíveis para sua tenra idade, mas corajosamente ajudava vovó nos cuidados com os menores, além de sair à venda dos panos que vovó fazia.

Meu avô era um homem sério, sistemático, fazia-se entender só pelo olhar, que os filhos bem compreendiam.

Fora minha mãe alfabetizada pelo avô materno, João Paulo Kanitz, que sendo professor por conta própria, improvisou numa velha casa uma escolinha, e ali muitas crianças recebiam as primeiras instruções escolares. Além disso, era meu bisavô um homem muito entendido apesar de não ter grandes estudos. Promovia na escolinha peças teatrais e treinava a garotada interessada para as apresentações.

Certa vez, mamãe representou uma idosa e o fez tão bem que arrancou lágrimas da assistência. Era um dos raríssimos lazeres que tinham.

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Janeiro de 1936.

João Martim no comando de sua carroça de três parelhas de cavalos ia para mais um dia de labuta, em troca de um salário modesto que mal dava para passar o mês. Carregava uma grande quantidade de toras que levaria para a Serraria do senhor Amadeu Teixeira, seguido por outros carroceiros atrás de si. Quando chegou, por um motivo não bem explicado, os cavalos se assustaram e agitados balançavam a carroça, derrubando meu avô, que caiu entre a parelha agitada. Acudiram rapidamente contendo os animais e o retiraram para um lugar seguro. Tonto e sentindo muitas dores,o levaram para casa onde vovó o tratou como pôde,usando os recursos disponíveis, tais como ervas, compressas, algumas homeopatias, conseguido na Botica do lugar.

Sentia-se fraco, ficara por muitos dias nessas condições e cada vez pior, naquele mundo sem recursos, sem tratamento adequado. Depois de padecer alguns dias, vovó vendo a situação se agravar, saiu em busca de ajuda junto ao dono do armazém, único a possuir um automóvel naquela região. De pronto atendeu ao pedido de minha avó e partiram imediatamente para Curitiba, viagem longa e demorada pelas condições das estradas esburacadas. Ficou internado e vovó regressou já com o senhor Carlos Taborda que a levou, pois deixara toda a criançada aos cuidados da vizinha.

E definhava a olhos vistos, o valente João Martim. Seria tarde o socorro? Infelizmente tarde demais.

Um mês em estado crítico, sem esperanças de melhoras. Os danos internos foram sérios e tudo que os médicos puderam fazer foi feito, mas sem bons resultados. Chamaram vovó e lhe disseram para levá-lo para casa, não havia mais nada a fazer, e assim ele voltou para a Colônia, para sua casa, para os seus filhos, por mais um pouco.

Trinta e seis anos apenas, um jovem pai, um dedicado esposo, e trabalhador ferido irremediavelmente naquele triste mês de janeiro.

Na sala da velha casa de madeira, sentado em frente à janela, sentado em sua cadeira de balanço, olhava a tarde, e seu olhar parecia longe, segundo me contou minha mãe. Falavam com ele, mas estava muito fraco, mal podia pronunciar uma resposta. Ladeado pelos pequenos, pela esposa e por seu pai, os últimos instantes de João Martim rondavam, impiedosamente ávido em lhe fechar definitivamente seus belos olhos azuis.

Pedira, meio balbuciando, palavras entrecortadas que cuidasse bem dos filhos, especialmente de minha mãe, já dando ares de mocinha. Vovó dissera que sim, que cuidaria com todo zelo.

Num derradeiro esforço, vovô pedira à esposa que lhe trouxesse o paletó, pendurado na parede e assim ela o fez.

Disse:

-Cristina, eis tudo o que tenho para lhes deixar!

Vovó apanhou um punhadinho de moedas, alguns réis, um valor tão pequeno, mas vovó emocionada diante daquela cena, dissera:

-Não se preocupe Martim, isso é suficiente!

Sabia que não,sabia o que o futuro lhe reservava,sabia das agruras que viria, mas teve a dignidade ímpar de consolar aquele bravo companheiro, naquele momento crucial ante os olhares dos pequeninos frutos daquela união.

Só Deus para saber a dimensão dos sentimentos daquele instante de absoluto silêncio e tristeza.

E assim se foi João Martim, o avô que não conheci, mas cuja história me enche os olhos de lágrimas, ao visualizar mentalmente tão drástico cenário. Se fora em plena juventude, deixando todos os filhos pequenos, que apesar da tenra idade, souberam continuar sob o braço forte de sua mãe, semeadora do bem e com zelo soubera cumprir sua promessa.

Martim, meu avô!Carroceiro, lutador, morto em batalha sob as patas dos cavalos, deixou uma herança à família, honradez e superação, que todos souberam caminhar apesar das pedras, que tiveram que remover das ruínas daquele ano aflitivo!

Leda Mara
Enviado por Leda Mara em 23/02/2021
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