De repente...

Sônia não amava mais o marido. Isso não significava que ela estava apaixonada por outro. Ela simplesmente não amava mais o marido. Não queria dizer também que o odiava ou que ele fosse mau para ela, mas simplesmente porque ela não o amava mais. Também não significava que ela não sentisse mais atração por ele e que evitava o sexo, não, eles ainda transavam e era bom, mas depois Sônia era indiferente, como se não precisasse daquilo. Certa vez ela se pegou pensando que seria até mesmo interessante que ele tivesse um caso, pois resolveria o problema. Pensou se sentiria ciúmes e imaginou algumas relações entre ele e algumas de suas amigas, e nada, nenhum sentimento, nenhum tipo de ciúme. Simplesmente a indiferença.

Enquanto lia uma novela de Balzac, se perdeu em pensamento aleatório e viu que as duas últimas páginas passaram despercebidas. Parou e deu oportunidade ao pensamento aleatório.

[a última vez que fizemos sexo eu estava com o pensamento numa árvore. uma árvore enquanto ele me penetrava. e agora a árvore retorna à minha mente e de imediato vem a cena dele sobre mim, suado, excitado, e eu indiferente. por que essa árvore? de onde tirei essa árvore? um lugar, talvez? trecho de um livro? tava lendo ontem Henry James, será que é alguma coisa dele? ou alguma imagem da infância? ah, lembro agora do Humberto, meu primeiro namorado. onde será que anda o Humberto? lembro que na casa dele tinha um jambeiro alto e suas flores caíam no quintal e ficava tudo lindo. ele dizia que desejava me possuir ali, enquanto as flores caíam. nunca conseguiu. ah, quem pode controlar esses pensamentos? não, não era um jambeiro, era numa mangueira que eu pensava. talvez dos meus dias no Recife, lembro de uma mangueira no pátio da igreja e as mangas vez ou outra faziam algum descuidado de vítima. ora, por que pensar nisso durante o sexo? coisa estranha.]

No ônibus, Sônia resolveu conversar com um estranho. A melhor pessoa para se desabafar são os estranhos. Pensou marcar um cinema com a Jane, mas amigas não são confiáveis em assuntos do espírito.

- Estamos casados há dez anos.

- Não, não, tudo vai bem.

- Jamais, nunca o traí e nem tenho esse desejo.

- Sim, exatamente, por isso a coisa toda se torna complexa.

- Não, não acho que isso seja a melhor saída.

- Não, não temos filhos e nem acho que isso seja uma solução.

- Sim, um pouco. Mas creio que o tédio é algo comum a todos em nossos dias, não?

- Sabe que eu já pensei nisso? Para ser sincera, certa vez decidi experimentar um romance fora do casamento. Falei que ia visitar minha mãe no sul do país e resolvi não ir direto a sua casa, mas fiquei uma semana numa cidade litorânea. Conheci alguns homens, mas nada aconteceu, tentei mesmo, mas nada.

- [o que foi?]

- Nada, me lembrei de uma coisa nessa cidade, era dessa cidade, a árvore!

- [que árvore?]

- Desculpe-me, está chegando meu ponto, desculpe-me e obrigada por me ouvir.

Sônia desceu do ônibus. Caminhou até uma praça e sentou-se no banco. Sem ter noção onde estava, completamente indiferente ao lugar e ao tempo, ela sentou-se, olhar fixo, a mente em movimento livre contemplava nitidamente a árvore que invadiu sua memória naquela tarde enquanto transava com seu marido e que retornara enquanto lia Balzac, e num raro momento de felicidade intensa gritou o nome…

Rodiney da Silva
Enviado por Rodiney da Silva em 09/10/2020
Código do texto: T7083691
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