Em Tempos de Pandemia 14

Elba adiantou ao diálogo, fazendo um breve relato da própria vida. Dizendo que depois da mudança da amiga, a vida continuou, teve outras amizades, na escola, em cada fase posterior de idade, com outras experiências fraternas. Tamara foi a amizade que levava guardada em um relicário no coração por toda a vida, representando a prática da ternura, do emocional espontâneo na criança que foi um dia.

Terminou o ensino regular aprovada no vestibular para o estudo de Serviço Social em Universidade Pública, passando residir em pensionado próximo à Instituição de Ensino, em outro estado, há mais de mil quilômetros de distância da cidade de origem.

Não voltou para casa depois do término dos estudos, conseguindo um emprego de Assistente Social na Instituição que trabalhava.

Tinham pouco tempo para tanta história a contar. Não deixaram de trazer para fora a espontaneidade das expressões e impressões que cada uma manifestavam desde criança, como que tivessem continuando a conversa de quando Tamara partiu, aos doze.

No trato, naquele curto diálogo de reencontro, ambas se mostraram como sempre, espontâneas, libertas de preconceitos ou derrotismos. Elba, ao invés de apelar para o espanto horror, não aceitação da condição da amiga na cadeira de rodas, depois de Tamara fazer o relato do porquê estar cadeirante, a amiga foi pontual:

___ Imagino o quanto sofreu, não por ter vergonha de estar cadeirante, mas por não fazer uso das pernas para ser livre, cuidar de si, agir e interagir na vida com suas próprias pernas. Mas logo me consolo, pois como te conheci na criança que foi um dia, deve estar se valendo da garra para reerguer-se, adaptar-se à nova vida, mesmo que isto esteja lhe custando um alto preço.

Elba finaliza:

___ Amiga, te aceito, a considero, como sempre a considerei, você não mudou na minha escala de valores, mesmo depois de muito tempo. A vejo, como sempre, no mesmo lugar. Pena não poder estar contigo, morando próxima a você, para darmos um bom passeio, irmos até aos pomares da vida, colheria as frutas de que mais gostávamos, banharíamos nas cachoeiras.

Perguntou sobre a questão da acessibilidade no território Suíço. Tamara respondeu:

___Ganha do Brasil para acesso aos espaços públicos em geral, e comércio. Encontra-se menos calor humano.

Como em qualquer lugar do mundo, o cadeirante está desafiado a sempre estar preparado para relações e organizações que muitas vezes o exclui pela via indireta. Preterido das necessidades primeiras dos locais que participa, seja numa lanchonete, num connsultório médico, laboratório, ou eventos públicos, encontrando muitos degraus como inimigos, calçadas esburacadas, ruas desniveladas, sendo impossível a ele andar sozinho. Seja no aeroporto daqui, ou da Suíça, jamais poderei estar sem ajuda de terceiros.

Além do ocaso, levando-me a condição de estar cadeirante, trazendo junto a necessidade de trabalhar a aceitação, além do desafio da auto superação diariamente, pede que eu esteja preparada para ver a mim mesma no invisível para o outro, onde muitos estão, agora, mais do que nunca, ineficientes para o despertar da empatia, a capacidade de compreender emocionalmente àqueles que portam necessidades especiais.

O tom de voz, os trejeitos, o "por favor", muitas vezes não chega conforme o interlocutor esperava, quando não, o tempo de realização de uma atividade, não corresponde com do que está sobre as duas pernas. Daí as frustrações, os ressentimentos, a angústia de não poder ser diferente, a revolta, todas as emoções conflituosas quer ganhar espaço, exigindo cada vez mais do cadeirante a paciência, a resiliência, o auto perdão, se permitir perder-se, cair e levantar, exceder e redimir-se, acostumar a estar nas funções do protagonista que trabalha na Rea

lização da Justiça em causa própria, ora como advogado, como promotor, ou Juiz.

Minha amiga!! Agora sei, de verdade, o significado e a importância da leveza do corpo para realizar um pequeno movimento, o paladar degustando um copo d`água, a respiração em seu funcionamento regular, dirigir-se até o interruptor e acender a luz, tirar um cisco do olho, coçar a ponta do nariz, higienizar-se, comer com as próprias mãos. Fui testada na ausculta do próprio corpo, remoí o que foi não ser correspondida com o perfeito funcionamento dele.

Tamara olhou no relógio, disse que teria que partir, antes, queria saber se Elba estava solteira, casada. Palpitando:

___Pois é!! Nunca esquecendo, como meu finado pai dizia: “ casamento é igual ao submarino, até boia, mas foi feito para afundar ”. As duas caíram na gargalhada.

Márcia Maria Anaga
Enviado por Márcia Maria Anaga em 31/08/2020
Reeditado em 02/09/2020
Código do texto: T7051199
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