A MENINA QUE APRENDIA TUDO

Dentro do ônibus a menina conversava desbragadamente com a mãe ou com qualquer ser respirante que a ouvisse. A "viagem" era longa pois que feita por ônibus urbano, que ia de Goianira até o Terminal Padre Pelágio em Goiânia. Depois era só pegar mais um ou dois ônibus, até chegar à casa da avô no Setor Pedro Ludovico, avó que era mãe de seu pai. A garota era hiper "atenciosa", no sentido de estar extremamente atenta a tudo que acontecia ao seu redor. Qualquer coisa que a rodeasse, rápido ela já sabia e não se esquecia. Saber era com ela mesmo. Nem deixava de conversar a respeito, falava de tudo que aprendia ou que estava aprendendo. Tinha acabado de aprender os primeiros rudimentos de primeiras letras. Esse novo recurso cognitivo fornecia muito mais coisas a serem observadas e aprendidas. Quando aprendeu a ler percebeu que o mundo tinha bem mais coisas do que antes pensava E naquela estrada, na verdade uma rodovia que "unia" as duas cidades conurbadas, além de outras coisas havia infinitas possibilidades literárias. Eram placas, out-doors, sinalizações de trânsito, fachadas de empreendimentos comerciais e industriais. Tudo que via ou lia de pronto sabia. Mas aí com o ônibus em movimento aparecia muita coisa nova que ela precisava conversar para saber por inteiro.

_ Fri-go-rí-fi-co! (...). Mãe!!!!

_ O que foi Ana Clara?

Era Ana, mais a Clara, como a dos Anjos, de Lima Barreto. Mas sem os olhos azuis. Era uma garota negra, de pele inefável. Os cabelos crespos em trancinhas iam até a altura do ombros. Feitos em tranças de tal modo que com o tempo acabavam por ceder à sua vocação de virar dreds.

_ O que é um fri-go-rí-fi-co?

_ É o lugar onde eles matam vacas...

Sua mãe achava não ser necessário colocar meios-tons, amaciar a realidade com eufemismos, dourar o bolo. A menina tinha que ter consciência da realidade perigosa em que viviam. Então, pra gente comer carne o bicho precisava ser matado. Assim é o mundo!

_ Coitadas, por que eles fazem uma judiação dessas? Vaca é um bicho que só serve para dar leite nas suas torneirinhas.

_ Não é só vaca, os bois também. Eles matam para a gente ter a carne que a gente come.

_ Ah! Tá bom. Pensei que fosse por judiação. Mas eles não devem sofrer. Acho que devem aplicar anestesia neles. Igual a Drª Micaela vai fazer nos meus dentes hoje. Mãe, será que eu tenho cárie... Não! Eu escovo bem os dentes, passo fio dental. Mas carne é um negócio difícil de tirar. Mas eles ensinam a gente na escola e a Drª Micaela e a Andreía, a ajudante, dela também ensinam. É difícil tirar carne quando a gente usa aparelho, a carne mistura com as liguinhas e com os ferrinhos que tão pendurados nos meus dentes. Por isso eu fico até com preguiça de comer carne. Mãe... isso é até bom. Não é? Isso deve salvar as vidas de muita vaca para elas darem leite. Leite não embaraça nos dentes. Então... eu tou ajudando a não matar vacas ali no fri-go-rí-fi-co...

_ Ana Clara!

_ O que foi mãe.

_ Fica caladinha, olhando para as placas.

_ Mas mãe...

_ Pergunta!

_ E se eu tiver dúvida?

_ Aí você pergunta. Se eu souber eu respondo. Se não depois a gente vê isso.

(...)

_ Manhê!

Chamou meio desconfiada.

_ Ai meu Deus! Fala Ana!

Ele fez o sinal da cruz.

_ Mãe, bate a mão na boca. A tia Nivalda lá da catequese falou que a gente não pode dizer o Santo Nome de Deus em vão...

_ Para Ana!

_... Mãe, o que é "vão". Vão para onde?

_ Pro inferno, Ana, se você não falar menos.

_ Bate a mão na boca de novo. E reza um Pai Nosso... Lembrei mãe o que eu queria perguntar.

_ O quê? Eles dão anestesia, não dão?

_ A dentista?

_ Não!! Nas vacas que vão dormir. Senão...

_ Para! Eles dão sim. Tem até psicólogo e até o padre vai rezar uma missa em intenção das almas delas. Pode ficar tranquila, a vida delas é até melhor depois de morrer. O paraíso delas só tem capim, parecido com os do Teletubbies.

Ela relaxou na cadeira ao saber disso. Estava até aliviada que os pastos lá do paraíso eram muito melhor que esses pastos secos do cerrado dessa época do ano.

_ Nooossa! Isso é muito bom. Se eu fosse vaca eu também ia querer morrer num fri-go-rí-fi-co...

_ É frigorífico Ana, não fri-go-rí-fi-co!

_ Tá bom. É bom saber que é frigorífico, que é tipo um lugar para ajudar as vacas...

(...)

Não passou batida a explicação que sua mãe deu a respeito das condições maravilhosas em que as vacas eram abatidas. Tinha uma dúvida. E nada para ela podia ficar sem explicação.

_ Mãe...

Pergunta meio ressabiada e com medo

_ ... O que é psicólogo!

_ Ai! Meu... Mais essa. Psicólogo é tipo um "doutor" que desentorta cabeça de gente doida...

_ Mas vaca não é gente.

_ Vaca também desentorta o coco. Principalmente quando sabe que vai morrer. Então tem psicólogo de vaca também. Agora vê se fica caladinha.

_ Tá bom mãe. Só vou abrir a janeja, para ver melhor.

Era parecia conformada com a necessidade imperativa de fazer silêncio para a mãe dar uma cochilada. Vida de gari não era fácil. Além de gari, estudante de psicologia à noite. Uma ventania entrava pela janela, balançando as tranças pesadas e as roupas floridas de Ana Clara. E pela janela ela mandou os olhos e a imaginação para fora do ônibus. Naquele momento todo mundo parecia interessado e se divertindo com a prosopopeia da garota que em dezembro faria sete anos. Até o motorista. E ela notou que estava causando sensação. Melhor porque ela gostava de plateia, principalmente se essa estivesse disposta a puxar conversa com ela. Uma mulher que estava no banco da frente, virou-se e a interpelou:

_ Sabia que você mesmo assim pretinha é bonita...

O restante dos passageiros ficou sem graça e a mãe aregalou os olhos, com vontade de esmurrar aquela mulher.

_ ... e muito inteligente!

_ Como é mesmo o nome da Senhora?

_ Helenira Pereira dos Santos

_ Engraçado, é um nome danado de feio. Parece com Goianira. E Goianira é um nome feio. A senhora não sabe mas eu faço capoeira, meu nome de guerra, é Garganta, e eu também faço jazz e e ballet, lá na associação comunitária. E lá eles me ensinaram que isso que a senhora falou é ra-cis-mo. E falar isso que a senhora falou dá até cadeia. De qualquer jeito obrigada por me chamar de bonita e inteligente. Mas eu já sabia disso. Todo mundo fala e até a professora, que é muito sabida, também fala.

Helenira virou-se para a frente, num misto de raiva e vergonha. Queria redarguir, mas tava com medo da língua destravada daquela garota. Resolveu ficar calada, engolindo a seco a chamada de atenção de uma criança, que tinha a lei a seu favor. "Esses pretos estão cada vez mais atrevidos. Bando de quilombolas nordestinos". Pensou, ou pelo menos acho que ela pensou. Mesmo sendo maranhense, por dentro ela não se emendava. Ficou calada, sem achar nenhuma graça naquela situação. Ao contrário do resto do ônibus que berrou em gargalhadas, rindo da astúcia da menina. Pois até quem não tem muita inteligência aprecia muito as pessoas inteligentes. E a garota era inteligente. Contrariando as ordens da mãe, Aninha levantou-se e deu uma olhada no jeitão de D. Helenira. Tava implicada com a vizinha de ônibus. Então perguntou:

_ A Senhora é crente do cu quente, não é? Sei por causa de suas roupas, pelo rabo de cavalo e pela Bíblia que a Senhora tem na mão. Mas pra mim não tem problema não. Minha catequista falou que a gente deve respeitar todas as religiões. Que a gente deve ser ecumê... Ecu o que mesmo mãe?

A mãe indiferente mas meio preocupada com o atravimento da menina respondeu:

_ Sei lá, Ana. Isso parece palavrão. Fala menos e respeite as pessoas. Tá bem?

_ Não tô desrespeitando ninguém, ela é que me desrespeitou primeiro. Acho que a minha mãe - falava para sua plateia - precisa mais de catequese que eu.

Então ocorreu nova hola de risadas. Exceto dona Helenira, que começou a ler aleatoriamente os Salmos em sua Blíbia. Até os demais crentes, que não eram poucos, também riram. No ônibus era só a menina falando, e todo mundo querendo que ela continuásse com o palavrório pernóstico. Ao contrário de sua mãe e de D. Helenira. Foi então que ela olhou para mim. Eu tava grudado num cano, meio que fazendo pole dance, para não ser defenestrado segundo as leis de Newton em vigência do trânsito de Goiânia. Ela me viu, pois eu já ria antes dela falar. Então ela percebeu que eu era um bom público.

_ Nooossa! Você é bem gordo...

_ Ana Clara Almeida!

Ela nem ouviu e continuou. Eu era a "bola" da vez em substituição a Dona Helenira.

_ ... Mas não é feio não. Qual é seu nome?

Falei meu nome e disse:

_ Obrigado! Se você estiver me elogiando.

_ É claro que tô elogiando. Banha não é defeito não. É só um jeito de ser. Tem até gente que gosta. Minha mãe por exemplo. Eu não, eu prefiro os meninos saradinhos ou magrelinhos como eu.

Naquela idade e a menina já tinha preferências em termos de sexo oposto. A mãe dela escondeu o rosto e evitava me olhar. Com vergonha de ver seus gostos sexuais assim correndo à boca miúda.

_ Cala boooca Ana! Deixa o homem em paz.

_ Deixe-a falar. Ela gosta. E a gente também

Eu disse.

_ Viu mãe! O Senhor Gordo aí falou que posso conversar. Qual é seu apelido? Seu nome é muito esquisito.

Ela sabia conversar. Perguntar o nome ou codinome é a melhor forma de abrir um diálogo. Torna o interlocutor ignorado em alguém íntimo. Falei meu apelido. E ela não gostou, achou mais feio que Helenira, Goianira e Pindamonhangaba. Ela olhou para mim e ficou me estudando.

_ Você fuma?

_ Sim. Porque você tá perguntando.

_ Eu vi a carteira no seu bolso. Sabe que isso é muuuuito feio. O pessoal da Saúde teve na escola e falou que cigarro faz mal para saúde. Tem mais de 4000 mil pródutos tóxicos... Mãe o que são "produtos tóxicos" mesmo?

Nem esperou a resposta e continuou com a doutrinação antitabagista.

_ E causa cãaaaaacer! Eu não sei o que isso, mas sei que é muito ruim. Matou minha avó lá em Lagarto no Sergipe? Você sabe onde é Sergipe? Minha mãe é de lá. Lá é pequininho e tem praia. Diferente daqui que é grande e só esses córregos e represas. Você vai morrer de câncer. Igual a minha vô. Mas ela não fumava, mesmo assim o câncer matou ela. Você que fuma vai morrer muito mais de câncer que ela. Você tem filhos?

Era incrível como ela ligava uma coisa com a outra. Falava da minha responsabilidade em continuar vivo, e já relacionou isso com a provável orfandade de meus filhos.

_ Sim, tenho dois. Como você sabe que cigarro causa tantos males?

_ Falaram que até tá escrito no cigarro. Aquela criancinha não quer comer feijoada só porque os pais e a mãe dela tão fumando perto. E tem até aquele pulmão cheio de pedaço de cigarro. Você também engole o resto do cigarro depois de fumar? Não faz isso não, senão fica daquele jeito. O povo da saúde também explica todas essas coisas. Eles mostraram cartazes dessas coisa horríiiiiiiiiiveis!

_ E os produtos tóxicos?

_ Pois é, é mais de 4 mil! Vê só! Nem sei como conseguem colocar tanta coisa ruim num cigarro!

_ Quais são esses produtos tóxicos?

_ Ih! Não sei não. Mas as pessoas falam, então é verdade. Mas deve ser porque cigarro faz mal. Né? Você conhece esses tóxicos?

_ Bem, eu não sei bem. Conheço só a nicotina e a amônia. E a amônia eles só colocam pra gente viciar.

_ O que é viciar?

_ É quando a gente não consegue ficar sem alguma coisa.

_ Eu sou viciada então. Só que não é com cigarro. Eu sou viciada em ir para a escola, em falar, em dançar jazz e em andar de ônibus.

Todo mundo riu.

_ Por que você não para de fumar?

_ Não sei não, talvez porque eu não queira. Também porque eu já esteja viciado em amônia. Ou talvez porque eu queira morrer de câncer ao invés de atropelado.

_ Credo! Bate a mão na boca! Porque você não para? Você precisa ficar vivo para cuidar de seus filhos, igual minha mãe, que não fuma e cuida de mim.

_ Tá bom, vou pensar nisso.

Ela esqueceu de mim, e escorregou os olhos para uma senhora de cabelo curto e olhos azuis, que se divertia prestando atenção nos rumos na conversa. Aprovando o que a a garota dizia e reprovando meu modo de vida e a minha lógica. Isso é coisa pra se conversar com uma criança? Eu até mudei a abordagem da minha argumentação em respeito à sua cara de reprovação. Ana espichou os olhos para ela, como se dissesse "pode falar, Dona". E a dona falou.

_ Ana, Você gosta muito de conversar? Não é?

Ela decidiu acabar com aquela discussão sobre cigarros. Eu até acheibom, pois eu preferia assistir do que ser assunto de sua língua. Estava constrangido de ficar ali na dura recebendo pito de uma menina chamada Ana Clara. Ela respondeu:

_ Iiiiiiiiiiich! Gosto pra bedel. Eu gosto de conversar, fuxicar, enredar, falar, fofocar, falar da vida "alheira"...

_ Ana! Fofocar é muito feio!

_ Tá bom, mãe. Eu... Como é mesmo o nome da Senhora?

_ Antonieta.

_ Pois é Dona Tonieta, eu gosto daquilo tudo. Mas de fofocar não. Minha mãe me proibiu de gostar disso. Tá bom?

Então D. Antonieta esticou o assunto.

_ Prá onde você tá indo?

_ Vou prá Goiânia. Gosto muito de Goiânia, mas não gosto de Goianira nem do Sergipe...

_ Você já foi até o Sergipe?

_ Não! Cruz credo. Lá todo mundo com esse "sutaque" de sergipano. Eu gosto é de falar é goianês, eu nasci foi em Goiás. Eu gosto de falarrrr porrrrrrrrta, porrrrrrrrrrrrco e "carrrça". Minha mãe fala é "eu sou di sergipi", "tô cum sêdi", desse jeito. Prefiro ser goiana igual meu pai...

_ Seu pai é mineiro, "minina doidja".

_ A senhora viu, né D. Tonieta? O jeito de Sergipe que ela conversa. Então eu quero é ser goiana diferente de ser mineiro igual meu pai. Mãe, o que é mineiro? Eu...

Mas D. Tonieta resolveu interromper a garota e toda aquela conversa bairrista, e voltar ao assunto que queria saber:

_ Mas o que mesmo você vai fazer em Goiânia?

_ Ih! Um monte de coisa. Hoje minha mãe vai me levar na Dr. Micaela para ela apertar meu aparelho e para colocar liguinhas de azul bem clarinho, parecido com os olhos da senhora. Depois ela vai me deixar na casa de minha vô. Então ela vai voltar para Goianira. Porque ela trabalha amanhã e ela quer ficar sozinha para namorar com seu Natanael...

A mãe arregalou os olhos.

_ Ana, cala a boca! Não fica falando as coisas da gente pra todo mundo. Nem pense em falar de seu pai, aquele bebum sem vergonha.

_ Mãe não fala assim do meu pai pra todo mundo! Tá bom.

(...)

O publico ficou meio sem graça, inclusive Dona Antonieta, já arrependida de ter feito a pergunta.

_ Pois é D. Tonieta, amanhã de noite é aniversário de minha sobrinha...

Ele esperou algum fee-back diante o pronunciamento dessa informação. Era pequena mas tinha suas técnicas retóricas, e para ela era uma iformação bombástica. Uma menina de 6 para 7 anos que já tem sobrinha. Essa coisa de ser tio era coisa de gente mais velha. Mas continuou.

_ (...) Olha se tem cabimento, eu com essa idade já tenho sobrinha. Sobrinha não, sobrinhos. Pois tem mais dois. É a Jaciely, ela vai fazer 8 anos, enquanto eu vou fazer 7 só no dia 24 de dezembro. Eu nasci na noite de natal. Eu gosto e não gosto dessa data. Não vai ter jeito de comemorar meu aniversário na escola, como fizeram meus colegas. Gosto porque todo mundo é obrigado a me dar dois presentes de uma vez. Cê sabe que eu quase me chamei Cristina ou Cristiana? Se tivesse nascido no outro dia isso tinha acontecido. Igual minha avó lá em Lagarto. Coitada, por causa disso o nome dela é Natalina. A Jaciely nasceu num dia bobo: 17 de agosto! Não aconteceu nada nesse dia? A senhora sabe se aconteceu alguma coisa?

Dona Tonieta desorientada em meio a esse turbilhão, pois ela nem sabia mais do que a menina estava falando, demorou a responder. Pois aquela é daquela categoria de perguntas que devem ser respondidas.

_ Olha, eu não lembro de nada. Mas deve ter acontecido alguma coisa. Mas nada que merecesse ser lembrado.

A menina assentiu com a cabeça, e gostou dela, ao contrário de D. Helenira.

_ A senhora é muito inteligente, quase igual a mim. Deve ser isso mesmo, deve ter acontecido coisa bem pequininha. Tipo escorregar numa casca de banana. A gente ri na hora, mas depois esquece. Vou contar para a Jaciely. A senhora acha que ela deve me dar "bença"? Eu sou tia dela, mas ela implica de não pedir.

_ Vocês são crianças, acho que não precisa não.

_ Tá Bom!

(...)

Ela ficou calada... Por alguns segundos.

_ Minha mãe nasceu em 2 de novembro. Coitada dela né dona Antonieta? Devia chamar Difuntina, não é?

Ela perguntava mas não esperava resposta. Era pura retórica.

_ Mas não, ela se chama Cícera, por causa de um tal Padim Ciço. Cícera é um nome bonito. Igual a minha mãe. A Senhora não acha?

A mãe viu que o assunto de novo tava virando para o lado dela, então resolveu arrefecer o ânimo da menina.

_ Fica caladinha, olhando para a janela. E tente dormir um pouco.

Ela toda cordata, assentiu. Virou a cabeça para a janela e ficou olhando... Fechou os olhos. E então abriu os olhos de novo, olhando para a janela. Começou a ler.

_ A-go-ro-qui-ma. Su-ple-men-to mi-ne... Ihii! Não deu para ler. Vocês sabem o que é su-ple-men-to?

Ninguém soube responder. Ou não quis. E ela continuou: lia e pronunciava todas as placas que via. No jeito dela. Mas era tanta placa, que mais parecia um intervalo comercial. Era tratores, implementos agrícolas, sementes, remédios para o gado, galpões rurais e poa aí vai. Então ela percebeu uma tendência: quase tudo era propaganda de roça.

_ Olha só mãe, só tem coisa de roça. E a gente tá indo pra Goiânia. Colocaram as placas para o lado contrário. Não é? A roça é pro o outro lado não é?

_ É. Mas deve ser porque é em Goiânia que eles compram as coisas que precisam.

_ Tá bom! Ei mãe olha lá, o que tá escrito!

Ela se assustou, pois ainda tinha esperança que a menina dormisse.

_ O que é Ana?

_ Ali tá escrito: Max Mo-tel.

_ É.

Tentou despistar para não entrar no mérito daquele assunto. O resto do ônibus delirou para que ele prolongasse. Pois esse sim prometia.

_ É o nome do Tio Max. Será que aí é dele? Deve ser não, ele é pobre de dar dó. E o prédio é bonito e colorido. Mãe!!

_ O quê?

_ O que é mo-tel?

Então foi pronunciada a temerária pergunta. A mãe não queria responder. Pensou deixar por isso mesmo. Mas a cara da menina era só interrogação e interrogação. Além do mais, aquele Senhor Gordo, pela pinta que já deu, bem podia se intrometer e sapecar uma resposta meio despachada. Não... Ela teria que responder.

_ Aninha... Motel, não Mo-tel, é um lugar para as pessoas namorarem... Entendeu?

A cara dela foi de mais ou menos. Ficou insatisfeita com a resposta, viu que ali tinha mais coisa. Pensou, pensou e pensou. E decidiu que era necessário esclarecer as coisas.

_ Namorar?! Uai eu pensei que isso podia ser feito em qualquer lugar. Agora essa, um lugar só para isso. Já vi gente namorando até no meio da missa.

_ Mãe, - falava puxando-lhe a blusa - é aqui que você e Seu Natanael vêm quando a Senhora me deixa em Goiânia?

A mãe deu-lhe um olhar 43, aquele de esguelha, que a filha, numa idioma que existia entre as duas, que se desenvolve entre pessoas com convivem muito, de pronto compreendeu. Ela entendeu tudo.

_ Eca! Que nojo! Como é que eles escrevem uma palavra dessas desse jeito, pra todo mundo ver. Ainda mais o tio Max. Deve ser outro Max. Então é aí que eles fazem bobagem, essas pouca vergonhice.

Fez um sinal da cruz, como se tivesse em frente a um cemitério ou a uma igreja. Então não quis mais falar daquilo. Achou até melhor mudar de assunto ou até em... Calar a boca. Se isso fosse possível. Só voltou a falar quando chegaram no paraíso das placas. Era a Polícia Rodoviária, ali chegando na Vila Mutirão. Aquilo a enlouqueceu, para que tanta placa se nem dava tempo de ler. Ela ficou até com medo. Mas ela conseguiu perceber que se tratava de polícia. E ela tinha medo de polícia. Devido ao que tinha acontecido com a polícia de Goianira, onde quase todo o destacamento policial foi preso por envolvimento em tráfico de drogas, formação de grupo de extermínio, extorsão e até rapto. Foi um escândalo tal, que ela nem podia ver polícia. E agora ela ali toda espalhafatosa, com suas placas e uniformes. Mesmo sendo rodoviária, era polícia.

_ Manhê!!!

Falou, segurando na roupa da mãe. Já tinha passado ali várias vezes, mas ainda não sabia ler. E nem percebia, pois o ônibus passava por um caminho exclusivo. Ela ficou calada olhando para a Polícia. Passou.

_ Ufa!

Mal passaram e foi aquele vruuuuuuuum! Sobre o ônibus. Ela se abaixou.

_ Mãe a polícia tá atacando a gente!

_ Deixe de ser boba, foi só um avião.

Então ela olhou. Era sim. Um avião bimotor passou rasante sobre o ônibus, dando a impressão para quem estava dentro de que estava caindo sobre a condução.

_ Mãe ele tá pousando ali.

_ É sim, ali é o Aeroclube de Goiânia. Olha lá escrito.

Disse apontando para a pista que ficava na diagonal da rodovia. Onde havia vários pequenos aviões e os seus muitos hangares. Para ela foi uma maravilha. Andar de avião é uma das aspirações de toda criança. Similar a de subir em coisas.

_ Nooossa! É muito avião. É aqui que eles estacionam. Tem até as garagens deles. Eu sou loooouca para andar de avião. Eu não tenho medo. Eu acho. Helicóptero é que é perigoso. Alguns deles nem tem porta. Mãe, quando a gente for para Sergipe, a gente vai de avião? Tomara. Eu quero ficar na janela. Pena que de avião a gente não lê placas. Será? Será que andar de ônibus é mais divertido? Pode ser....

E falava e falava, até o brinquedinho chinês descarregar as pilhas. Ela olhava para a estrada, e lá na frente desenhava-se a silhueta dentada do skyline de Goiânia. Como ela gostava de ver aquilo. Ela gostava muito de cidade, e nada para ela era mais cidade do que o seu esqueleto de edificios. Foi dando uma leseira. Ela sentia uma sensação de conforto. A cidade é um lugar onde tem muita coisa, todas elas dispostas para a gente aprender. Ela se sentia menorzinha toda vez que chegava em Goiânia, como que submetida a um domínio que era mais forte que ela. Era meio opressivo. Mas ela gostava disso. Foi dando um sono e dormiu. Dormiu feito uma pedra por uns dez minutos até chegar no terminal de ônibus urbano. O ônibus parou e só com muito custo a mãe conseguiu acordá-la. De um súbito, por uma força estranha da natureza, todo mundo foi cuspido para fora do ônibus, com uma pequena ajuda das leis de Newton, como já se sabe. Aquele bolo de gente. Lá no meio a mãe arrastava a menina ainda meio sonolenta, que trazia às costas sua mochila Hello Kitty. As duas foram desaparecendo em meio a um turbilhão humano indistinto. Iam pegar o Eixão até a Praça A. Aos poucos a menina que aprendia tudo começou a desaparecer, virando só mais um número, numa cidade cuja única democracia era essa, transformar uma pessoa em só mais uma. Independente do tanto que sabia ou do que podia saber. Ela desapareceu, pois cidade é o lugar que existe para que as pessoas não possam ser percebidas. A pessoa que aprendia tudo, do meu ponto de vista, virou estatística.