Inconsciência

O menino, como a grande maioria dos meninos de dezesseis anos, possuía um vasto círculo de amigos. Tinha muito talento para o futebol, o que também é comum nessa idade, além de um sorriso largo que iluminava o rosto retinto, tal qual a lua o céu negro e estrelado. Ele ia religiosamente aos treinos da escolinha de futebol da comunidade em que morava, ia à escola, entregava lanches no horário noturno em troca de algum dinheiro que pudesse suprir um pouco de suas necessidades de menino e ainda ajudar a velha avó aposentada.

Dezesseis anos. Às vezes, afirmava a algum novo conhecido que perguntasse que já tinha dezoito. Gostava de passar por mais velho e mais maduro do que era de fato. Tímido com as moças, mas cativante. Não era raro vê-lo ser procurado por algumas delas, especialmente após as partidas de futebol. O futebol era o único voo alto que ousava planejar. De resto, sonhava simplicidades de menino.

A pequena casa em que morava com a avó possuía o reboco inacabado, as portas e janelas rotas e enferrujadas e ficava bem distante, no alto do morro, onde as banalidades, o suor diário e a neblina chegam primeiro, deixando aparecer aos moradores dos locais mais baixos apenas uma nesga de luz. Tinha apenas um irmão mais velho, que já estava, com muito esforço, concluindo a faculdade de administração.

Era dia vinte de novembro e o menino, como de costume, descia a pé do alto de seu humilde refúgio para o treino do dia. Com as chuteiras na mochila, já vestido da camisa e do calção, despediu-se da avó já assobiando pela rua. Um pé ante o outro eram ponteiros de relógio marcando cinco horas e cinquenta minutos da manhã. No ponto de ônibus mais próximo, o sol começava a raiar e a revelar outros sorrisos, uns também em rostos retintos, outros, amarelos de apatia.

Ouviu-se então o certeiro e grave ruído. Em seguida, gritos, freadas e latidos dos vira-latas desavisados. Pessoas ao chão enquanto afastavam-se a viatura e as motocicletas. Mulheres assustadas escondiam-se atrás de carros parados ao longo da rua. No ponto de ônibus, todos levantaram-se do chão. Todos, menos ele. Menino no corpo leve e imóvel, abraçado à mochila e aos sonhos interrompidos, enquanto um filete de seu sangue retinto escorre parco, preto e vívido em direção ao bueiro.