Construir

Fazia um silêncio não exatamente absoluto. Mas, para uma terça-feira a tarde, era o suficiente para me surpreender. Levantei da cama e fui até a escrivaninha. Eu não precisava de silêncio para descansar. Eu precisava de silêncio para outras coisas. Para construir, por exemplo. Construir imagens, construir ideias. Talvez eu nem pudesse dizer que estava construindo nada. Talvez eu estivesse destruindo alguma coisa. A verdade é que o material da minha obra era completo por si só. Era algo que não precisava da intervenção nem da ajuda de ninguém para cumprir seu propósito. Mas lá estava eu tentando tornar aquilo mais palatável aos seres humanos que compartilhavam o mundo comigo. Nós todos temos a mania de não nos atentarmos às coisas belas e incríveis que temos ao nosso redor. Uma mania horrível e incorrigível. E, quando alguém encontra essas coisas, quando alguém as aponta e as mostra ao mundo, o mundo não as consegue digerir. Ou pelo menos parece não conseguir. O mundo cisma que a grandiosidade das coisas não é lá tão grandiosa assim. São só coisas. Talvez sejam. Mas as coisas tem uma beleza intrínseca. Não só coisas. As próprias pessoas que renegam a beleza das coisas também são, com algumas exceções, belas. As pessoas, como as coisas, são muitas vezes indigeríveis. Algumas pessoas são como uma enchente de pensamentos e sensações. Indescritíveis. Informações incessantes, ininterruptas, imparáveis. Quanto mais se pensa nelas, mais se tem para pensar.

As janelas já estavam escancaradas. Melhor assim. O céu estava, como sempre, excepcionalmente belo. O céu é uma dessas coisas belas que quase ninguém percebe. E o sol. O sol, inclusive, talvez seja o porquê da beleza do céu. Da beleza da lua. Da beleza do mundo. Não estou aqui para dizer que o céu, a lua e o mundo devem tudo ao sol. Não, não tudo, mas muita coisa. Sentei. Abri um caderno pequeno e pus-me a escrever. A construir. A lápis mesmo. Eu costumava usar canetas, mas naquele dia o grafite parecia mais atraente do que a tinta. Tudo que eu consegui fazer, por um longo quarto de hora, foi espalhar palavras pela folha. Qualquer um que visse aquilo com outros olhos que não os meus diria que nada fazia sentido. Que era tudo muito desconexo. Talvez dissesse. Talvez não. Talvez eu fizesse muito mais sentido do que imaginava. Eu, na verdade, não sabia o que pretendia quando sentei ali para escrever. Tudo que eu tinha era um tema. Um tema que não saía da minha cabeça por nada. Minhas mãos bem que tentaram esvaziar minha cabeça através do grafite. Mas, como eu havia dito, aquilo era uma enchente, uma correnteza irreprimível de pensamentos. Tentei por mais um tempo e, como esperado, sem muito sucesso. Talvez eu devesse juntar todas aquelas palavras e ideias num poema. Mas que tipo de poema? Que forma faria justiça a tamanha beleza? Nada parecia estar a altura. Após alguns minutos parado, olhando para a parede branca, aquilo tudo parecia me afogar. Eu sentia como se estivesse sendo carregado por um rio caudaloso. Sem a menor chance de salvação. Mas, ao invés de desespero, eu sentia calma em meio a toda aquela água. A imagem que aquele fluxo de pensamentos construía em minha cabeça era das mais incríveis e harmoniosas. O céu, as árvores, pássaros, flores, diversos animais. Pisquei e tudo se desfez. Menos a sensação de transbordamento. Pensei, por um segundo, em ligar para uma amiga. Talvez a boca conseguisse o que as mãos não conseguiram. Mais um segundo foi o suficiente para que eu mudasse de ideia. Suspirei, peguei o lápis e virei a folha. Estampei, sem perceber, um sorriso no rosto. Talvez eu não conseguisse fazer jus à beleza dela, mas eu precisava tentar de qualquer jeito.

Pus-me a escrever. “Fazia um silêncio não exatamente absoluto. Mas, para uma terça-feira a tarde, era o suficiente para me surpreender. (...)”

Pedro Paz
Enviado por Pedro Paz em 07/10/2019
Reeditado em 07/10/2019
Código do texto: T6763712
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