1969
Morava perto de um hospital para portadores de doenças mentais.
Eu e minha querida amiga tinha o habito de ficar espreitando as grades, para ver as crianças brincando no pátio com escorregadores, balanços e bancos minúsculos que rodeavam as árvores que ali debruçavam sombras afetuosas.
As freiras revezavam para cuidar dessas crianças, porém tinha uma freira muito novinha que olhava para nós e sorria.
Ficávamos em exultantes com aquele sorriso e cochichávamos que um dia pediríamos nossos pais para deixar-nos morar ali.
Um dia a freira boazinha deixou-nos entrar.
As crianças brincavam e quando nos notaram vieram perguntar sobre tudo e todos:
Você assiste televisão?
Você vai à escola?
Seu cabelo é de verdade assim tão grande?
Vocês têm pais?
De que vocês gostam de brincar?
Com tantas perguntas a freira pediu que sentássemos no banco e foi organizando as perguntas e respostas.
Antes de irmos embora fizemos uma grande roda e cantamos “a fonte de tororó”.
Combinamos que voltaríamos quando a freira boazinha estivesse no pátio.
Fomos para casa prometendo que não diríamos nada a nossos pais, pois sabíamos que nos proibiriam de voltarmos.
Deitada na grama fiquei pensando como e porque aquelas crianças estavam ali!
Eram todas lindas graciosas e inteligentes, é verdade que uma ou outra ficaram quietas num canto sem falar com um olhar para o nada.
Voltamos ao hospital umas três vezes e brincávamos para valer.
A freira boazinha foi embora e assim acabaram nossas visitas.
1972
Minha família resolveu que mudaríamos para a capital.
No dia da mudança abracei minha querida amiga aos prantos e prometi que nos encontraríamos novamente.
1982
Voltei a minha querida cidade natal para visitar minha amiga de infância e convida-la a ser madrinha de casamento.
Conversávamos sobre nossa infância e fiquei sabendo que desativaram o hospital e que naquele momento era uma escola estadual.
Lembramos de nossas visitas quando soube que houve vários inquéritos contra familiares que usaram o hospital para internar crianças que não se ajustavam a sociedade.
Minha amiga mostrou-me os artigos que foram registrados nos jornais:
J.A
Vim para cá com 3 anos, meus pais disseram que era para ficar aqui, que eles fariam uma grande viagem, nunca mais os vi.
Em meu relatório de internação constava que eu só brincava de bonecas e gostava de usar roupas de minha mãe.
A.M
Cheguei aqui com 7 anos, morava em outra cidade e frequentava uma escola, vim para cá porque passei batom nos lábios e fui estudar.
M.P
Depois de ficar preso, por um mês, num quarto em minha casa vim para cá.
Não me lembro do motivo na época, era muito pequeno, minha tia diz que eu tinha um andar duvidoso.
M.C
Lembro que rasguei um vestido e que quebrava todas minhas bonecas, eu queria apenas jogar bola e pião.
L.O
Vim para cá porque minha mãe pegou-me beijando minha coleguinha.
Dentre todos os depoimentos apenas 5% eram autistas, esquizofrênicos ou com síndrome de down.
Essa matéria no jornal veio intitulada como CURA DE GAYS.
Tratamento consistia em medicamentos e promessa de mudança de orientação sexual dos pacientes.
 Foram flagrados tratamentos dolorosos, composto por eletrochoques e doses de remédio, para mudar a “opção sexual” dos pacientes.
Classificavam a orientação por pessoas do mesmo sexo como uma doença mental. 
As meninas acima de 12 anos eram vítimas contínuas de abuso sexual sob o pretexto de “mudança” na sua orientação sexual, enquanto os meninos, eram sujeitos à chamada “terapia reparativa”.
2019
Quando vejo uma manifestação LGBTI+ fico orgulhosa dessa vitória, que aquelas crianças com que brinquei na infância, conseguiram impor seus direitos de cidadãos.

 


 
elaenesuzete
Enviado por elaenesuzete em 07/09/2019
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