O Poeta

Sentado em um banco de concreto, desses que normalmente são colocados em praça pública – mas o em questão estava no quintal de nosso herói –, Jônatas suspirava ao observar nas flores sua última fatalidade: não sobrara nenhuma ali. Levou tão a sério a superstição de que nas pétalas da margarida escondem-se as respostas para as angústias de amor que não se satisfez com a bem-me-quer que veio após duas malmequeres. Decidido a parar apenas quando as bem-me-queres fossem de número superior e conseguisse uma unanimidade de bem-me-queres nas três flores seguintes (para ter certeza!), terminou sua calamidade na conta de vinte e duas malmequeres, quatorze bem-me-queres e mais um jardim perdido. Embora ainda morasse com os pais aos seus vinte e um anos de idade, o jardim era dele – plantado e cultivado por ele, motivado mais pelo amor que tinha ao belo que pelo amor que tinha às plantas. Bucolismo, ao nosso Jônatas, não era precisamente sobre ver o belo nas plantas, mas antes sobre ver as plantas no belo. Ou seja, seu bucolismo floral era mais sobre dizer-se bucólico que sobre dizer-se apreciador da natureza! Como todo e qualquer esteta que se preze, embora ciente de suas superficialidades e suas profundidades, não era atentado a em que isso tudo implicava. Ou, antes, era, mas era parcialmente, porque dizia: “O belo e verdadeiro suplanta o meramente belo, mas o meramente belo suplanta o verdadeiro e feio!” – Ás retórico autoral preparado para ser jogado diante de quem lhe apontasse problemas em sua filosofia, pois, se não servia como argumento convincente, servia como muros ao castelo impenetrável da beleza, obra arquitetônica de primeira espécie àqueles capazes de enxergá-la. Se lhe diziam que louvava um rei nu, retrucava sem vacilo: “Falso! Se o senhor não enxerga as maravilhosas vestes doiradas”, (variante tão mais maravilhosa que sua irmã dourada), “que ao menos não acuse o resto do mundo de não vê-las também. Ademais, no conto, as vestes do rei foram vendidas por mentirosos, mas no meu caso as vestes foram presenteadas pelas próprias musas do belo.” Orgulhoso em sua loucura, autointitulado sábio por saber-se louco enquanto os outros não eram capazes disso, suspirava, no entanto, o dia todo, pois a sina do esteta é viver em um mundo horrível. A Jônatas, naquele momento, essa sina se traduzia no seu traidor jardim deflorado por uma esperança de amor.

Desde que se descobrira poeta, no início da odisseia adolescente, amou e homenageou em versos mais ou menos tantas belas mulheres quanto aquelas com quem teve a honra de falar. “Toda bela mulher é um tesouro mágico”, dizia-se. Mas, a despeito da grandiosidade das intenções, no coração adolescente jamais batera de fato – julgava seguramente – o Amor tão bem recitado de Camões a Moraes. Não atribuía esse desperdício de anos à imaturidade da adolescência; antes, cria severamente que a única condição para o surgimento de um amor sincero, conquanto houvesse outras ao desenvolvimento do amor maduro, era a simples vontade sincera por um amor singelo, o que não faltava nos adolescentes. Mas, nele especificamente, pelo que estava descobrindo com a moça que dera um fim a suas pobres margaridas, essa vontade sincera não existiu durante a adolescência. Faltou porque nunca foi capaz de olhar a uma mulher devidamente, sempre inebriado demais pela imagem do Amar para percebê-las em sua pureza (o fogo que arde e não se sente, a chama que deve ser eterna enquanto durar, era isso que escondia as mulheres). Ora, não o julguemos, não foi Jônatas o único rapazote a cometer esse erro nos tempos de botão. Ademais, se foi erro motivado por qualquer coisa – filosofia do próprio –, então essa coisa foi desejar muito fortemente ser capaz de amar. E, se houve algum efeito colateral – idem –, tal fora a sua atual disposição a amar grandiosamente, muito mais grandiosamente que a maioria dos colegas da mesma idade. Pelo menos nisto o leitor tem de concordar de uma maneira ou de outra, se entender “amar grandiosamente” como Jônatas, pois quantos são os jovens de vinte e um anos que carregam uma bagagem de centenas de versos – de maioria má? bolas, ainda assim versos! –, que decoraram com tanta diligência um jardim de margaridas, tendo-as escolhido pelo valor poético, para um dia dispuserem-se a destruí-las em razão de uma única moça, seu verdadeiro primeiro amor? Nem é preciso dizer que tais foram apenas alguns dos tantos feitos amorosos de nosso jovem por essa moça. Portanto, enfim, desta vez estava certo, ainda mais certo do esteve nos outros pares de vezes: desta vez fora, indubitavelmente, o amor verdadeiro que batera a sua porta.

Enquanto o pulso direito tremia por dor na alma, tentava contê-lo com o punho esquerdo. Com as pernas balançando para lá e para cá, as lágrimas vertendo, o sol se escondia atrás de nuvens e Jônatas, secretamente, no seio de sua desgraça, dava graças aos deuses (não o acusem de paganismo; era pura estética clássica) por tornarem-no parte de um quadro tão admirável e original – O Jovem que Desfez o Jardim –, e pedia para que qualquer pintor passasse por ali e se inspirasse com a cena. Ah, como amava sofrer! Mas ainda era sofrimento. Se amava sofrer, amava também lutar contra o sofrimento; isso era ser esteta. Por que não podia amá-lo a dama e acabar com essa a dor? Fariam coisas belas juntos, coisas tão belas como o sofrimento, senão mais – se viriam com o bônus de com isso serem felizes! Como um artista que termina sua obra e vai à seguinte, O Jovem que Desfez o Jardim percebeu que estava na hora de levantar-se e ir atrás da mulher, ignorando o aviso das margaridas, porque ficar ali parado era o mesmo que condenar-se a cedo ou tarde condenar-se a descobrir da mais dura maneira que nunca mais teria outra chance de conseguir a mão dela, porque então seu coração teria sido entregue a outro homem.

Foi-se. Falaria com a moça. Era a hora em que ela saía da escola.

Jônatas foi educado por livros românticos, aprendendo a escolher suas pretendentes dentre as mulheres de menos idade. De preferência, mulheres virgens, menores de idade, ainda na escola (uma concessão que fazia aos tempos modernos). Se fizesse quarenta anos sem ter encontrado ninguém, talvez então se desfizesse desse ideal, mas, aos vinte e um, se via em pleno direito de apaixonar-se por uma jovem na flor de seus dezesseis anos de idade. Uma menina mais nova só trazia vantagens para o casamento perfeito do esteta: seria uma dama que se pudesse fazer amar ingenuamente e por quem valia a pena amar também ingenuamente, uma dama que conheceria o corpo de Jônatas antes de conhecer a carne de outros homens, e, melhor, conheceria o corpo de Jônatas comprometendo-se a jamais pousar as mãos sobre a carne de outros homens, ficando seu amado como a única fonte de todos os prazeres, desse modo mais celestiais que carnais. Além disso, uma dama mais jovem confiaria nele mais facilmente, pois Jônatas entraria logo de início como a figura provedora de conhecimento, de dinheiro e muito mais, uma vez que tinha em seu carisma uma excentricidade de que, embora uma jovem bem pudesse, em um primeiro momento, envergonhar-se, por vê-la em seu amado, ela não deixaria de sentir-se sortuda por ter sido a escolhida. Sobre dinheiro, não tinha tanto assim, era verdade, mas um dia teria: seguindo as leis da tradição, estudava para ingressar na faculdade de medicina. Isso porque os livros que lia davam poucas opções: era Medicina ou era Direito. Quando não isso, era carreira pública ou política, mas a Jônatas não agradavam essas opções. Fora dos assuntos de academia, poeta não era poeta se não houvesse trabalhado a contragosto em jornais para sobreviver, sendo melhor ainda se se envolvesse na Educação para que espalhasse mais entre os estudantes a essência do belo. Olavo Bilac, inclusive, formalmente o mais esteta dos poetas brasileiros (quem o negasse se veria com Jônatas), nesse sentido foi o suprassumo: ingressou em Medicina, abandonou Medicina, ingressou em Direito, abandonou Direito, odiou o jornal e foi jornalista, arranjou cargos públicos, meteu-se na política patriótica, meteu-se na educação e, ainda, teve uma musa mais jovem a quem amou loucamente, Amélia; que, além de ter esse nome, tinha de ser poetisa e irmã de outros grandes poetas. É claro que Bilac nunca se casou com ela, tudo devido a um drama familiar em sua juventude, tornando-o ainda mais o modelo perfeito de Poeta. Entre Medicina e Direito, Jônatas optava pela primeira porque, agora, a área do Direito tinha apenas uma sombra de seu antigo prestígio, enquanto a Medicina era cada vez mais forte. Não pretendia abandonar o curso (se pretendesse não estaria sendo perfeitamente esteta), mas pretendia, além de médico, ser escritor, um escritor do belo e amante da bela. Com o dinheiro de doutor, o carisma de autor e a eventual confiança de tutor, Jônatas tinha tudo para conquistar o coração da jovem. Que os raios partam o que restou daquele jardim de margaridas traidoras, o importante era falar com a moça!

Há coisas que são mais belas no imaginário do que quando trazidas ao mundo real. Ficar em frente a uma escola estadual aguardando uma jovem, sem dúvida nenhuma, é uma delas. O rapaz lutava para não se horrorizar com os gritos juvenis que saíam pelas janelas: embora sua intuição lhe dissesse se tratar de uma deselegante falta de senso, a presença de sua musa lá dentro o fazia forçar-se a perceber que os gritos não eram mais que frutos do frescor dessa revigorante juventude revel à realidade carcerária de uma escola cujos professores, às mais das vezes, não são dignos do cargo. Além do mais, era claro que sua musa não estava entre os que faziam barulho. Sentado novamente em um banco de concreto, este em uma praça pública, esperaria durante quarenta minutos pela chance de ver a sua amada, que deveria estar no segundo ou terceiro ano do ensino médio. Moscas o rodeavam debaixo daquele sol, que bem poderia voltar para atrás das nuvens, e uma crise espirros fez com que tivesse de limpar o muco na gola de sua camiseta. Porém, para que não se irritasse, raciocinou (poetizou): “São as pragas da natureza tentando fazer com que eu recue, mas um poeta é incapaz de compactuar com vernáculo de etimologia tão grosseira. Aqui ei de me manter até a vista da mulher mais linda de todas!” Mas interrompeu seu conseguinte sorriso vitorioso ao se dar conta de que acabara de pecar contra os princípios do bucolismo, então corrigiu: “É a natureza mãe testando o amor de seu filho das musas!” Trinta minutos se passaram, faltavam dez para o meio-dia, que, supunha, era quando a dama sairia. As estilosas vestes de manga comprida não combinavam com o suor que escorria de seus cabelos; a glória que tentava mentalmente dar a esses suores de labuta se desfazia no mau cheiro e na fragilidade do raciocínio, pois não estava em um momento de labuta. Se antes estivesse sangrando, sangrando em razão de algum golpe que levou antes de derrotar o vândalo que tentava assaltar a senhora que defendia, então seria mais poética a sua espera, mas, em vez da hombridade, recebia com suor apenas o fedor, a coceira e os insetos. Àquela altura só precisava de mais um motivo para ir embora argumentando que um artista não pode permanecer em estado tão deplorável. Só mais um, e daria no pé, mas até lá se esforçava para dizer a si mesmo que permaneceria onde estava fizesse sol fizesse chuva (“como seria conveniente uma chuva agora, aliás!”). Quem finalmente deu esse último motivo para ele ir embora foi a própria moça. Seu nome era Beatriz, como tinha de ser. Ao avistá-la entre a turva de crianças, rindo ao lado de um garoto maior que ele, fingiu disposição de combater o rival: levantou-se do banco de concreto com poderio e valor, caminhou em direção a sua amada com versos inéditos dobrados no bolso e, bem quando estava próximo o bastante para que pudesse entender o que os dois jovens conversavam, ouviu aquele labrusco a chamando de “Bia”... O horror! Somente não se horrificara tanto quanto quando ela imediatamente atendeu naturalmente ao chamado. Era o fim: uma Beatriz que aceita ser chamada de “Bia” não era a Beatriz que teria Jônatas.

Poeta que seria incompreendido se alguém o notasse, partiu para longe chorar as mágoas de um coração despedaçado. Uma Beatriz que aceita ser chamada de Bia não saberia amar ou ser amada, e nosso Jovem que Desfez o Jardim com certeza não estava disposto a dedicar sua vida a uma musa assim. O que ele faria agora era entregar-se de corpo e alma aos estudos, resignado a nunca mais, não importasse a mulher que visse, abrir seu coração enquanto vivesse. Sim, era o que devia ser feito. Não! Melhor: seria o poeta a nunca encontrar uma dama que estivesse a sua altura. Quando a encontrasse, então... “Não!”, interrompeu-se, “Ainda não seria belo se eu esperasse encontrar uma dama. Aposto minha alma que jamais me depararei neste século com aquela capaz de atender às grandiosas expectativas de meu coração!”... Mas meteu a mão na boca, azedado com seu “grandiosas”, pois é princípio do esteta a modéstia (se for modéstia falsa, então a mentira tem de levada ao túmulo pelo bem de póstumos estudos biográficos). Corrigiu-se no que lhe pareceu a solução definitiva: “Estou desiludido com o mundo em que vivo. Não há mais mulheres verdadeiras, não há mais homens verdadeiros. Se eu, amante singelo das Letras, simplesmente por isso me torno uma figura excêntrica, de que modo esperar uma só alma feminina que atenda ao meu lado amoroso, que é ainda mais afetado pelo belo? Então me resta doar-me à ciência, à ciência que é a única que tem voz no inferno moderno, mas ai, ai de mim! Poeta que sou, não poderia me dar parcialmente a algo; minha sina é entregar-me absolutamente aos livros, namorar as prescrições, casar-me com o consultório!” Isso, assim lhe parecia bom. Agora era chegar em casa, tomar um bom banho, colocar uma bela roupa folgada e começar a estudar; porém só conseguiu virar a primeira página de seus estudos quando Selene já o chamava para a cama. Aconteceu que gastou a tarde inteira com uma ode à estética do niilismo para homenagear a mais nova condição existencial que adotara.

De maio de 2018, revisado hoje, em 31 de agosto de 2019.

Malveira Cruz
Enviado por Malveira Cruz em 31/08/2019
Reeditado em 07/04/2020
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