Correspondência

A folha única, precisa e limpa com uma inscrição à mostra: “Linhas retas para os teus passos e concomitantemente tornas para os teus sorrisos.” O envelope estava semi-aberto, porém íntegro e com selo recente. Ana estranhou a presença da correspondência sem identificação de remetente em sua caixa de correios. Como estava atrasada, a carta rapidamente teve o mesmo destino dos boletos bancários costumeiros: o canto da cômoda.

A manhã era recém aberta, feito broto de flor trivial e costumeira. O dia transcorreu normalmente e nela o estranhamento causado pela correspondência logo se desfez ainda no início do agitado período de trabalho. No fim do dia, ao chegar em casa, a moça organizou-se para dormir. Ana tomou um banho demorado, até ter a sensação de que o cansaço e o cheiro dos papéis empoeirados do escritório de administração em que trabalhava tivessem descido pelo ralo junto com o espesso sabonete.

Ana era alta e tinha longos e volumosos cabelos que escovava muito bem antes de dormir. Somente assim, sentada na cama espaçosa e clara, escovando os cabelos antes de separar as roupas, acessórios e materiais que usaria no dia seguinte, ela lembrou-se do envelope e de imediato foi buscá-lo, pensando em, o quanto antes possível, entregá-lo ao destinatário, já que não reconheceu o nome do remetente.

A carta curta e escrita com letras caprichosas fora enviada por Gabriel Duarte, e, como a moça não tinha entre os familiares e os raros amigos ninguém com esse nome, cogitou um engano dos correios. A mensagem certamente pertencia a um de seus poucos vizinhos próximos. Enviou algumas mensagens telefônicas, e, esperando que o destinatário se manifestasse, recostou-se calmamente com a folha única, organizada e precisa entre os dedos:

Espero que esta ao chegar a encontre bem, como eu me encontrava no momento em que a escrevi a você. Só lamento estar distante e não poder neste momento te dar um abraço. Sei que não foi fácil passar pelas perdas por que você passou, mas continue resiliente. Você é dotada de força e sabedoria; não esqueça isso. Fosse possível, levaria suas preocupações em meus ombros para aliviar os seus. Preocupa-me inclusive a sua saúde também. Veja se não vai entregar-se como eu. Você tem a vida inteira. O mundo inteiro é seu, e, com paciência ele chegará até você. Vou contar que os sorrisos são construídos... é um aprendizado diário direcionar bem nossas emoções. Sabia que o que é enfatizado aumenta e se reveste de grandeza? Então olhe uma segunda vez e foque somente o que precisa aumentar. Diminua tudo aquilo que sufoca para que a sua respiração possa fluir e um novo fôlego possa chegar. Estas linhas tortas são a curva de meu sorriso chegando até você e uma brincadeira para fazê-la sorrir também.

Ana sentiu instantaneamente o seu coração aquecer. Era uma brisa suave retirando delicadamente de si a poeira de sua rotina e solidão. Uma mão apertando as suas e um suspiro desconhecido e solidário para alguém que já não tinha ninguém com quem contar e que viu tantas pessoas chegarem e partirem.

As mãos brancas e suaves fecharam a carta enquanto os olhos claros e úmidos de Ana ergueram-se em direção a janela. A lua nova sorria-lhe cobrindo-lhe de prata da mais clara e fina. No celular, todas as respostas dos conhecidos às suas mensagens eram semelhantes. Ninguém conhecia o remetente. Ela apropriou-se das linhas e sorriu junto com a lua. Alguém no céu leu suas entrelinhas. A correspondência foi guardada cuidadosamente dentro de seu antigo diário.O ar já era límpido. O sono a cobriu como uma colcha de retalhos costurada com fragmentos de banalidades, lágrimas e esperança.