Os vivos e os mortos (abril de 2019)

A parte do hospital mais temida e menos frequentada era o necrotério. Na recepção do pronto-socorro do hospital Vanusa recebia visitantes para lá uma vez por semana. Em geral, vinham pessoas em busca de parentes desaparecidos. De fato, já havia se passado uma semana sem um pedido de visita quando aquela mulher apareceu.

Era começo de julho – quando as árvores perdem um pouco das folhas e sentimos frio aqui nos trópicos. Vanusa contava as horas na recepção do pronto-socorro: queria ir embora para enfiar-se debaixo do cobertor e assistir televisão. Quando faltava uma hora para as dez da noite – uma hora para sair de seu turno de trabalho – foi que ela apareceu.

Surgiu de tal forma silenciosa que quando disse “boa noite” a plantonista deu um grito estridente. A senhora desculpou-se prontamente. Apresentou-se como Lucia de Fatima Resende e disse que vinha em busca de seu filho Cláudio, desaparecido fazia uma semana. Vanusa verificaria no computador para ver se poderia ajudar.

Após uma pesquisa meticulosa inteirou-se de que ninguém havia dado entrada no hospital com o nome que a senhora lhe oferecera. Envolta em um sobretudo felpudo que parecia caro e protegia a senhora sexagenária do frio, Lucia assentiu com um sorriso tenro. Disse então à plantonista Vanusa: “tem certeza? E se estiver morto?”

Vanusa comunicou-lhe que entre os pacientes não havia nenhum com o nome do filho, e que no necrotério não havia morto senão do gênero feminino: apenas uma senhora sem nome que aguardava o reclame de alguém da família. A senhora então agradeceu-lhe e perguntou se poderia voltar no outro dia. Vanusa assentiu que poderia.

Foi embora e não demorou para que Vanusa fosse para casa proteger-se do frio inclemente de julho. A visita da senhora idosa lhe deixara abalada; sentia algo como se uma golfada de vento frio do polo sul lhe sacudisse a consciência por alguns minutos – mas a moça de vinte e quatro anos procurou afastar de sua mente o acontecido.

O dia seguinte de trabalho começou cedo logo pela manhã, pois a cada dois dias as horas de sua escala de trabalho se invertiam. Mudava de plantão para atendimento diurno trocando suas horas com outra colega de trabalho. Pensara muito na senhora que lhe visitara na noite anterior e esperou todo o dia que aparecesse, mas isso não ocorreu.

Tivera um dia normal de trabalho no hospital. Nenhum incidente com pacientes, nenhuma reclamação pela demora em ser atendido. Vanusa poderia dizer que esse fora um daqueles dias de sorte na vida de pronto-socorrista da atendente. Terminado o turno às duas horas da tarde, desligou-se completamente do trabalho e foi para casa dormir.

No dia seguinte eram as mesmas horas diurnas de trabalho. Já não pensava mais na visitante noturna da sexagenária. Houve aquele dia algumas emergências devido a um acidente de automóveis envolvendo um ônibus. “Um dia daqueles”. Quando o relógio marcou duas horas da tarde, era sua hora de ir embora. Exausta, sentiu grande alívio!

Mudança de horário do turno diurno para o plantão: esse dia trabalharia no período das duas horas da tarde às dez horas da noite e demonstrou ser mais um dia movimentado de trabalho. As chuvas do interior do estado trouxeram pacientes com doenças associadas ao contato com o esgoto da cidade. Havia muita infecção urinária e diarreia.

Chegando a noite, Vanusa sentia poder respirar: o fluxo de pessoas diminuiu consideravelmente. Mas como de costume, estava morta de frio e pensava em chegar rapidamente em casa. Aproximava-se o final do plantão às dez horas da noite e a troca de escalas ela não tardaria a acontecer. Foi quando ela surgiu novamente.

Eram novamente nove horas da noite novamente quando a senhora trajando a mesma roupa de frio, um sobretudo felpudo charmoso, entrou no hall do pronto-socorro. Disse “boa noite querida”. E estendeu suas mãos sobre o balcão. “Lembra-se de mim? Estive aqui há três noites a procura de meu filho.”

Vanusa lhe respondeu um pouco tímida que sim, pois “como poderia esquecê-la?” Novamente pôs-se a buscar no computador, mas ninguém se encaixava no perfil procurado. E no necrotério, apenas havia uma mulher. A senhora demonstrou tristeza mas estava como antes, muito educada e serena. Agradeceu e foi embora.

Vanusa mais uma vez sentia-se mal pela visita da senhora. “O filho desaparecido há uma semana, talvez morto, quanto sentimento tem aquela mãe a procura de seu filho! Sinto-me mal”. Chegada a sua hora de partir, a plantonista enfrentou o vento frio na rua até avistar um táxi. Chegando em casa, foi depressa para a cama.

Mas não era fácil dormir. Aquela senhora parecia entrar através da janela fechada, dessa vez chamando Vanusa pelo nome. Com toda essa história dormiu mal a noite, e quase perde o horário de seu atendimento matutino no outro dia. Acordou meia hora depois do despertador e levantou-se depressa. Chegou ao hospital a tempo de começar o turno.

Nos dois dias de atendimento diurno, outras vítimas de acidente deram entrada. Vanusa viu-se ocupada os dias inteiros. Mas durante seu intervalo para o cafezinho ainda pensava em dona Lucia. Pensava: suportaria receber outra visita daquelas às nove horas da noite? Rezou um Pai nosso para reunir forças, só por via das dúvidas.

Até que chegou a noite tão temida. E nessa noite, quando deu nove horas em ponto entrou um rapaz alegando reclamar pelo corpo de sua mãe, desaparecida há dez dias. Senhor! O nome do rapaz era Cláudio Resende, o mesmo procurado pela mãe nas noites anteriores. Foram então direto para o necrotério, onde havia o corpo de uma senhora.

Senhor! A senhora no necrotério era Lúcia de Fátima Resende, aquela que buscava seu filho em noites anteriores. O filho a reconhecia. Vanusa resolveu não lhe contar a história, preferindo rezar para que a senhora Lúcia encontrasse descanso agora que ela finalmente encontrara o filho.