A cesta de natal (março de 2019)

Anita vivia próxima à catedral da cidade, a aproximadamente duzentos metros da igreja em uma rua transversal. Talvez por isso (ou devido a uma fé agigantada) frequentava as missas da manhã todos os dias da semana. Era a única da família que ia à missa todos os dias: suas filhas o faziam só no domingo e sua mãe não acreditava em Deus.

As filhas tinham oito e dez anos de idade e moravam com sua mãe na casa da avó. O pai das crianças as havia abandonado logo após o nascimento da segunda filha. Ficou para Maria, a mãe de Anita, receber em casa as três, pedindo como pagamento por sua generosidade que Anita lhe ajudasse com as costuras para fora.

Viviam das costuras e de uma pensão pequena que recebiam do avô falecido das duas meninas, marido de Maria. Obtinham sucesso em pagar pelas despesas de casa, como alimentação, roupas e moradia; e ainda a escola particular das duas meninas. No final do mês as contas sempre se pagavam. Anita atribuía seu sucesso à sua devoção à igreja.

As crianças, que queriam seguir o exemplo da avó e ficar em casa assistindo televisão, aprenderam a assistir missa na igreja todos os domingos. Foram igualmente forçadas a fazer a primeira comunhão aos sete anos de idade cada uma. Com o tempo pararam de reclamar das visitas dominicais porque aprenderam que aquilo era inevitável.

O pai de Anita teria orgulho da família, se estivesse vivo. Levavam a vida com um rigor espartano, o que garantia que nada de substancial lhes faltasse. A trabalho compartilhado das três mulheres, da mais pequena à senhora avó, lhes proporcionava uma vida de dureza com um mínimo de conforto. Eram felizes cada uma à sua maneira.

Em uma manhã de domingo, havia uma semana para o Natal, o inesperado cruzou-lhes o caminho: voltavam da missa para casa às oito horas da manhã quando se depararam com uma cesta de Natal muito generosa, farta, na porta de entrada. Havia vinhos, queijos, doces de todos os tipos, e muitas outras guloseimas.

Havia também um pequeno bilhete, sem remetente como atestaram as meninas, que foi rapidamente introduzido por Anita no bolso do paletó. Procurando abraçar com as duas mãos a pesada cesta e contando com a ajuda das crianças, Anita entrou em casa. Sua mãe ainda dormia, embora já fossem oito horas da manhã.

Todos à mesa do café, o assunto era a cesta natalina. As crianças, argumentando que não havia o endereço do remetente, defendiam ficarem com a cesta. Sua mãe, alegando princípios morais, defendia que deveriam devolvê-la. A avó Maria, que primeiro lançara na cesta um olhar de aparente desprezo, apoiou a decisão de Anita: eles a devolveriam.

Não seria por princípios religiosos de Maria, uma vez que não acreditava em Deus. Tampouco sentia – como acreditava a filha Anita – que a moralidade da família era colocada a prova; mas é que a velha acreditava em devolver a cesta por que isso lhe parecia ser simplesmente a coisa certa a fazer.

Depois do café da manhã, dispersaram-se. As meninas queriam brincar de bonecas, e Maria cuidaria do jardim. Anita alertou-os que deveria fazer algum trabalho nas costuras e desapareceu casa adentro até o quarto nos fundos onde ficavam os apetrechos. Lá, sentou-se e começou a manusear as peças de roupa.

Anita passava peça por peça lentamente, com algum esforço na medida em que tentava concentrar-se. Passou pelos olhos alguns vestidos e manuseou tecidos marcados com lápis na altura dos cortes – utilizando a tesoura nas marcas onde deveriam ser cortados. Ficou assim por aproximadamente duas horas, procurando não pensar na cesta de Natal.

Lembrou do bilhete que escondera no paletó: sem demora, tomou-o nas mãos e pôs-se a ler com aguda curiosidade: “Há sempre algo mais em sua vida do que em sua honrosa dedicação”. Anita lembrou-se imediatamente de sua mãe criticando sua religiosidade, mas a cesta não teria sido obra sua. Maria não dispunha do bastante para compra-la.

Cogitou Anita se aquilo não seria uma crítica de outra pessoa a seu comportamento religioso, mas ainda acreditava possível que tudo não se passava de um equívoco, que a cesta deveria chegar a outras mãos. Nervosa, ordenou a todos em casa que não tocassem na cesta advertindo que precisava pensar um pouco sobre seu destino.

Considerou a possibilidade de entregar a cesta natalina para uma associação da igreja que toma conta de órfãos. Mas logo se lembrou que as crianças do orfanato fariam pouco uso de garrafas de vinhos e outros bens luxuosos. Terminariam provavelmente na mesa dos padres e sacristãos.

Ainda considerou tentar vender a cesta na pequena feira de caridade natalina organizada também pela igreja. Mas não. Itens de luxo não combinam com os frequentadores de uma quermesse. Talvez... sugerisse um leilão na prefeitura? E aí poderia até ser que afinal conhecessem a origem da cesta natalina? Alguém haveria que delatasse o doador.

Passados três dias, na antevéspera de Natal, Anita chegou a um veredito: poderiam consumir a cesta nas festividades da noite de natal. E ainda sobrariam guloseimas que poderiam ser apreciadas na manhã seguinte, durante o almoço, juntas as quatro em torno da mesa abarrotada pelas delícias.

As meninas concordaram prontamente com Anita, mas Maria permaneceu firme em sua decisão: para ela, deveriam livrar-se da cesta, talvez entregá-la à polícia. Argumentava que ficar com a cesta seria uma sandice, mas não fez muita força na defesa de seu ponto de vista. No final prevaleceram os votos de Anita e das duas crianças contra o de Maria.

Na véspera de Natal a família de mulheres reuniu-se em torno da mesa arrumada propriamente: a cesta de Natal disposta no centro. As meninas deleitaram-se comendo docinhos, enquanto Maria devorava sem austeridade uma latinha de anchovas com biscoitinhos de coquetel. Anita tomou várias taças de vinho e comeu queijo brie.