E a nave vai (fevereiro de 2019)

“Uma viagem é muito mais que uma viagem. É mais que um nada. ” Pensei enquanto o navio balançava de um lado para outro suavemente conforme o movimento das ondas (gigantescas) do mar. Lembrei-me da sabedoria do filósofo pré-socrático Heráclito, que dizia ser “impossível entrar no mesmo rio duas vezes.” – Ou nesse oceano, digo eu.

“Eu amava Cláudia muito mais que duas vezes um milhão” pensei que deveria ter contado isso para ela para que não duvidasse nunca de minha estima. Nesse momento, enquanto o sol se põe no horizonte (há horizonte para mim em todas as direções) Cláudia está a caminho de casa, há milhas de distância daqui, na costa do Brasil.

Não era moça rica. Trabalhava. Passava o dia inteiro à frente de pacientes que visitavam seu pequeno consultório odontológico ao lado da estação central do metrô. A vida corria bem, tudo parecia caminhar para o nosso casamento. Ter muitos pacientes queria dizer mais dinheiro que entrava em nossa poupança matrimonial.

Eu, de meu lado, trabalhava também para isso. Labutava em uma companhia de cruzeiros que me mantinha por meses distante de casa. Trabalho como imediato, o que quer dizer que devo respeito às ordens do capitão do navio e, por vezes, desempenho seu papel. Abaixo de mim na hierarquia do comando do navio há diversos encarregados.

Ganha-se bem, esse o motivo da escolha da profissão. Mas, pesando os prós e os contras do ofício, volta e meia penso que talvez fizesse melhor como gerente de uma boate de luxo. As horas de trabalho no navio são longas horas. E por aqui às vezes temos que de alguma forma ser lembrados dos entes queridos, pois aqui tudo se esquece.

Tenho por esse motivo a foto de Cláudia em minha carteira e, como um exercício, a cada pequeno coffee break, eu a abro e cubro-lhe de afagos suaves. Mas a pressão que surge a partir das obrigações de um imediato na esfera do comando da nave – que corta o oceano produzindo no caminho uma espuma retilínea – faz-me às vezes esquecê-la.

Outro dia sonhei que ela estava aqui. Perfilados em um corredor do setor de comando do navio, os oficiais retiravam seus quepes brancos para saudá-la. Em meu sonho ela parecia adorar tudo aquilo. Sorria e me abraçava. Perguntava-me se eu poderia por favor convidá-la sempre para viajarmos juntos.

A realidade era muito diferente. Nós dois havíamos uma vez viajado como hóspedes em um cruzeiro da companhia, um privilégio de funcionário. Eu pagava pelos passeios terrestres quando atracávamos em algum porto, mas não pagava a despesa da viagem no navio. Cláudia detestou a viagem pelo que chamou de correria insana.

De fato, a viagem de navio é feita sobre atividades turísticas bem rígidas, em que não há praticamente tempo o suficiente para desviar-se do roteiro. Ela tirou poucas fotos – em que aparecia em todas com uma cara muito enjoada. Depois da experiência marcante, já faz cinco anos este ano, declarou “isso não faz o meu gênero, perdoa amor”.

Cláudia disse rindo, “essa diversão fica toda para você!” Então entendi que para ela o enfadonho ficava inteiro para o meu bel-prazer. E de fato, nesse dia de hoje em que lembro da viagem marítima com Cláudia, pareço enfadonhamente agastado, mais que em muitos momentos da vida. E é aí que gostaria que alguém me compreendesse...

Talvez não me compreendesse Cláudia, mas que houvesse alguém que comungasse comigo da ideia de que em uma viagem inocente de navio pela costa caribenha muita água corre dentro da gente. É como disse mestre Heráclito, com o qual comecei esse relato: não há como entrar em um mesmo rio duas vezes.

Eu insisto e gostaria de gritar para que todos ouvissem que uma viagem é muito mais que uma viagem! Mas me tomariam por insano. Há tanto que ocorre do lado de dentro da gente em uma imensa nave de cruzeiro que é evidente para mim que não há como não experimentar uma perda de si na forma de uma dorzinha insistente no coração.

Não amo mais outro alguém, não é isso. As belas senhoras que enchem o navio até hoje não foram capazes de arrancar Cláudia de mim. Não desejo a ninguém mais. Já tenho compromisso e tenho um casamento que, certamente em um ou dois anos, sairá dos planos para a realidade. E ao pensar nisso sinto hoje minhas pernas tremerem.

É aí que meus pelos do corpo eriçam. Tenho dor de cabeça. Muito dentro de mim me faz girar de um extremo ao outro. Só há uma diva em minha vida e não há o que mudar nisso. Contudo, visito o outro extremo de mim mesmo e constato que as longas viagens longe de casa mexem o suficiente comigo a ponto de negar meu matrimônio.

Sim, há um lado de mim que nega o casamento com minha amada. A espuma do mar, deixada para trás pelo corte no mar que promovem as gigantescas pás do navio, é minha única testemunha nesse solitário pensar que me move de um lado para o outro, de um extremo para o outro, junto com as ondas do mar.

Que fique para o leitor que me acompanha decidir o meu castigo. Mereço ou não o castigo por ousar em pensamento abrir mão de uma pessoa que, lhes asseguro, é especialmente generosa e divertida – dentre tantas outras qualidades preciosas? Pois cogitar desprezá-la abrindo mão de seu amor já é penoso o bastante para mim.

Por mais que, por ventura aceitasse acompanhar-me em um cruzeiro (tenho a certeza de que não), sei que nosso relacionamento não sobreviveria de novo ao desgaste entre nós dois a bordo. A solução de deixá-la seria penosa para ela, mas ela já trabalha e tem o seu mundo. De nenhuma maneira nos dias de hoje seria vista como uma mulher rejeitada.

A cada viagem, mudo. Preciso tomar às mãos o conhecimento de quem me torno a cada ida e vinda. Desejo sobretudo que o leitor que segue minhas palavras possa julgar-me com justiça, levando em conta que nunca desejei trocar uma flor por uma erva daninha. É que não entro neste mar sempre da mesma maneira. Nem saio de forma igual dele.