A BOLA SEMPRE A ROLAR

No Rio ou em Ibitinema*, jogar bola sempre foi atividade essencial para Tiago. O futebol o fascinou desde a primeira partida que viu pela televisão. Idolatrava craques, como Castilho, Pinheiro e Telê, e sonhava, bem pequeno, vir a ser jogador como seus ídolos de infância. Esse projeto foi sendo abandonado aos poucos, apesar de um ou outro estímulo à carreira futebolística, como o convite que lhe fizeram alguns de seus companheiros de pelada, no Rio, para integrar o Bandeirante, time infantil da rua Antônio Basílio, ou melhor, do trecho onde residia naquela rua.

No sítio da tia Chiquinha, a bola rolava solta (...). Havia uma área do quintal mais espaçosa, entre a casa, o engenho e o terreiro de pedra, escolhida para a prática esportiva. Essa área não era gramada, e sim de terra dura, mas, de todo modo, prestava-se bem às correrias atrás da bola e podia até, com certa dose de indulgência, ser considerada um campo ideal, se comparada à dureza bem maior do cimento das calçadas onde Tiago jogava em seu domínio carioca.

Nesse campo de futebol improvisado, Tiago e Raulzinho montaram os primeiros “gols”, terminologia essa apropriada para descrever os dois tijolos ou pedregulhos que colocavam em cada extremidade do terreno, entre os quais deveria passar a bola para serem marcados os gols verdadeiros que fazem a essência do futebol. Vez por outra, substituíam os tijolos por bambus com uma trave superior e, aí sim, já podiam falar de travessões ou balizas, mais condizentes com os requerimentos protocolares do nobre esporte. A inconveniência das balizas de bambu é que não resistiam muito tempo às boladas desferidas pelos dois moleques em suas partidas gol a gol. Logo, logo, a trave superior despencava, já que não era pregada solidamente às estacas laterais, mas simplesmente amarrada com barbante. Em geral, em um único dia, as balizas vinham abaixo, rachadas pela bola ou, finalmente, pelos chutes diretos dos dois jogadores, que, ao ver os bambus claudicantes, lhes davam o golpe de misericórdia. Depois disso, voltavam triunfantes, no dia seguinte, os tijolos e pedregulhos.

O uso desses arremedos de balizas contribuía para alimentar as discussões sem fim entre Tiago e Raulzinho se a bola entrara no gol ou passara por cima dos tijolos, o que caracterizaria bolas na trave, se traves houvesse. Os dois chiavam a mais não poder para contestar alguns gols do adversário e evitar a derrota iminente. Tiago chiava mais do que seu primo, pois perdia a maioria dessas peladas gol a gol, com chutes à distância. Quando jogava na linha, ainda mostrava alguma qualidade futebolística, graças à rapidez e à agilidade que possuía. No gol, contudo, era um autêntico “frangueiro”.

(...)

Em muitas ocasiões, não estando seu primo ou algum dos filhos dos peões que lhe pudesse fazer companhia, Tiago não se dava por vencido e jogava sozinho, irradiando a partida como se houvesse equipes completas em campo. Inventava nomes de times e de jogadores, passava a pelota aos companheiros imaginários e deles recebia passes que convertia em tentos admiráveis, incensando seu espírito de futuro craque. O importante é que a bola nunca deixasse de rolar.

Grandes sagas como a do futebol peladeiro requerem sua heroína, que, nesse caso, não poderia ser outra senão a bola. A que mais participou das peladas no sítio tinha nome de batismo, por sinal bem apropriado: Glória. Com cinco ou seis anos, Tiago ganhou da mãe uma simpática bola de borracha, com desenhos abstratos de cor azul e violeta, à qual resolveu dar aquele glorioso nome. Talvez insuflada por tamanha honraria, Glória respondeu ao carinho do menino com uma longevidade de dar inveja. Foi levada, novinha em folha, para o sítio e lá permaneceu por cerca de dez anos - o que deve equivaler a uns cem na espécie humana -, à espera submissa do dono. Resistiu a chutes, a estouradas entre os jogadores e, mais surpreendente, às cercas de arame farpado que delimitavam uma das extremidades do campo de futebol improvisado. Durou muito a saudosa bolinha. Mesmo depois de velha e já furada, ainda serviu para fazer embaixadinhas até desaparecer de vez, sem as honrarias que bem fazia por merecer. (...)

*Trecho do conto Ibitinema (Ibitinema e Outras Histórias, ed. Lamparina Luminosa, SP, 2016). Nome de distrito do município de Santo Antônio de Pádua, RJ, vizinho à cidade de Pirapetinga, MG.