Napoleões Retintos

O homem divagava: eles constroem as mansões e depois são proibidos de entrar nelas. Lavram a terra, plantam e colhem as lavoras mas seus filhos quase não comem dos frutos do seu trabalho. Pagam toda qualidade de imposto, sobre o simples cigarrinho, passando pelo pãozinho nosso de cada dia e até pela cachacinha, mas esses impostos nunca se convertem em obras sociais que melhorem sua condição de vida. Esses impostos vão ser servir, isso sim, para financiar as mordomias dos políticos e dos poderosos. Produzem os calçados e as roupas mas seus filhos vivem nus e descalços. Sofrem horrores nas filas de tudo que e instituição pública. Não têm direito à escola de qualidade para os filhos, nem boa assistência médica e nem tampouco uma aposentadoria decente no fim da vida. Eles não vivem, pensou, vegetam. Eles são os barões famintos, os Napoleões retintos, os pigmeus de bulevar, os componentes da escola de samba da miséria tão bem retratados por Chico Buarque no seu antológico sambão "Vai Passar". Eles são os desdentados, os doentes, os indigentes, os miseráveis, grande parte do povo brasileiro.

Continuava divagando e até indagando dos seus botões: - Até quando esse povo vai aguentar tanto sufoco? Qual a gota d'água que vai transbordar o pote da sua paciência? Constatava: o mais incrível é que esse bloco de famintos ainda é capaz, em alguns casos, de se emocionar com o Hino Nacional, com a Bandeira do Brasil, com as vitórias de Airton Sena e, pasmem, ainda engolem em seco as promessas mirabolantes de alguns políticos elitistas e demagogos. Esse povo, ressaltava, é bom, ordeiro, pacífico. Mas até quando vai se conformar com a sua miséria quase absoluta e com o espetáculo faraônico da riqueza de meia dúzia de privilegiados e seus respectivos capachos?

Pensava convicto: - Não sei não, mas ultimamente tenho ouvido muitas queixas, não são as lamúrias conformistas de praxe, mas alguns indícios de revolta. O riso dos famintos está desaparecendo das suas faces. Nem Didi Trapalhão consegue fazê-los rir porque o estômago deles dói, o no na garganta aperta e trava o riso, a raiva está amentando. E o desespero é uma espécie de tambor da insatisfação popular. É o primeiro passo para a revolta. Quem tem ouvidos para ouvir e olhos para ver pode, se quiser, constatar isso. Dizia com certo exagero: - Vivemos uma fase muito parecida com os momentos que antecederam a "Tomada da Bastilha"na França. Será que os políticos e autoridades não estão pressentindo o que vem por aí? Não seria o caso deles darem a paradinha na politicagem, nas armações ilimitadas, no fisiologismo, e tomar medidas de austeridade e de estrutura em todos os níveis? A Democracia está dançando no fio de uma navalha. Os Napoleões Retintos (e famintos) que pagam a farra dos poderosos podem, a qualquer momento, assar com a sua escola com um enredo diferente: exigindo o que lhes é de direito: viver com dignidade e uma fatia do bolo da riqueza nacional. Democracia anão rima com miséria. Nem no Brasil. Inté.

P.S. Escrita em 17.05.1992. Parece que de certa forma ainda está valendo

Dartagnan Ferraz
Enviado por Dartagnan Ferraz em 03/05/2019
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