A coisa
Numa noite fria de junho, no centro da cidade, numa arena
repleta de prédios, conheci um homem cuja idade não era revelada pelo
rosto. Tomávamos café como amigos que se conhecem fortuitamente
e; numa pausa que durou mais tempo do que o costume; começou ele
a me contar a seguinte história que não se deixou perecer do meu
íntimo.
“Estava andando na rua, numa região de planície, onde a
ausência das montanhas se sente falta. Andava numa cidade de
tamanho médio, cujo nome faço questão de olvidar. Vi algo com
aparência humana na esquina. O que via era nítido e belo. Aquela coisa
virou a esquina e como uma obrigação dos meus ímpetos, também virei
a esquina. No primeiro ponto parou. Não ousei me aproximar muito. O
ônibus veio e eu tive de correr para também estar dentro dele. Sentei
longe. Olhava com medo, mas olhava, precisava. Eu estava vendo a
forma que possuía corpo. Não podia deixar escapar nenhum daqueles
momentos. Via aquilo no ônibus. Eu via e ninguém mais podia imaginar
que um vivente também estava ali. Não me aproximava mais. Eu sentia
uma enorme atração. Uma vontade de pegar, de ter para mim, um
prazer que se confundia com a vontade de morrer. No próximo ponto, à
margem de uma estrada, desceu. Virou à direita e num descampado,
onde o mato parecia ser bruto, se embrenhou. Continuei a seguir. Se a
loucura existia naquele momento, eu a amava. Pisava quase em cima
de suas próprias pegadas. Contornava sempre os mesmos galhos
quebrados. Ela continuava a andar, não me via ou fingia que não me
via; ou então não precisava me ver. Dentro do mato, os passarinhos
diziam. O chão era mais macio. As árvores frondosas com formatos
delicados. Nós caminhávamos. Eu seguia em silêncio respiratório.
Fomos atravessando. Percorremos toda aquela mata até dar num ( logo
que a mata se abriu ) lago cuja limpidez expelia saudade. Ela, em todo
percurso, não olhou para trás. O lago foi se aproximando e ela
continuou andando. Quando a água já tocava nossos pés, ela não
parou, continuou a seguir. A água começou a cobrir meus tornozelos,
minhas canelas, meus joelhos, minha cintura. Nesse instante, já não a
via mais inteira. Ela estava à minha frente. Só via o que estava acima
da água. À medida que nós andavamos, eu via cada vez menos. Eu via
tudo entrar debaixo d’água, até que num instante estrito, onde existiu
um real limite, eu não a vi mais, nunca mais. Sobrou para meus olhos
apenas a frieza inerte da horizontal do lago. Mas não parei aí. A água
já estava no pescoço e eu prossegui, mais lento por causa da
resistência da substância. Eu fui me cobrindo; a boca se banhou, as
pontas das orelhas se molharam; porém, continuei a andar. O nariz se
cobriu. Já não respirava mais. Continuei a andar com que havia de ar
nos meus pulmões; continuei. Não conseguia parar, o ar foi-se
acabando, acabando, mas não temi. A cabeça já estava coberta,
sentia agora, pela primeira vez, desde que entrei no lago, a frieza da
água. Continuei a andar, andar e gastar os pulmões. A última gota de
ar se foi; dali em diante; só senti um desespero vulcânico, o que me
atirou para superfície, o que me fez nadar para a margem. Olhei para o
lago depois que a fadiga passou e como se não entendesse o que
aconteceu, chorei, chorei aliviado, chorei de dor. Sentia-me pálido,
fraco. As lágrimas escorriam. Não conseguia me acalmar. Muitas horas
depois, retornei pelo mesmo caminho por que vim. A cada galho que eu
reconhecia, o meu desespero retornava. Retornava como se tudo fosse
se repetir novamente. Foram várias semanas para me recompor do
acontecido. Até hoje guardo em preto e branco, certas seqüelas. Ainda
sonho o dia, o lago e os mínimos detalhes”.
Silenciou-se, me silenciei também. Olhei a xícara vazia antes de
pensar em me despedir.