Tempos Difíceis II

Eis o segundo capítulo que você, se disposto e satisfeito com o anterior, poderá lê-lo. Veja, portanto:

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De repente, ouviu-se a voz de Mário de dona Quitéria:

– Ontem, à noite, morreram mais três de nossos companheiros, vitimados pela desnutrição. Vamos enterrá-los. Necessitamos da ajuda dos mais fortes para cavar as covas nas quais os nossos amigos repousarão por toda a eternidade. Antes, cantemos alguns benditos e rezemos pelas almas de nossos companheiros.

Para cavar as sepulturas, usaram ferramentas abandonadas nas casas onde pernoitaram. Trabalharam com bastante esforço, pois a terra seca lhes impôs grandes dificuldades. Terminada a tarefa macabra, deitaram os três defuntos, cada um em seu leito perpétuo.

As mulheres novamente rezaram ao Pai Celestial, pedindo-Lhe que as almas virtuosas dos infaustos amigos, José, João e Maria subissem ao Céu. Todos careciam desse conforto espiritual. Ademais, esse poderia ser o destino do grupo. O fantasma da fome e das doenças endêmicas espreitava o sofrido dia a dia dos caminhantes.

– Estou certa de que eles rogarão por nós, pedindo ao Senhor que nos dispense a graça de chegarmos ao nosso destino sem novos acontecimentos como esse – disse dona Joana, no que foi acompanhada pelo restante do grupo, ao dizer:

– Amém!

Depois do enterro, Mário convocou os homens mais jovens para perfurar algumas cacimbas, à procura de água. Quase todos estavam mortos de sede. Ao término de um trabalho vitorioso, aproveitaram o ensejo para refrescar o rosto tostado do sol e encher os cantis. Os estômagos continuavam vazios. Em absoluto jejum.

A jornada ainda não terminara. Pelos cálculos de Mário de dona Quitéria restavam percorrer umas três léguas até a capital da província. A distância dali ao destino era de dezoito quilômetros. Com fome e sede, parecia ser mais distante ainda.

Os retirantes reiniciaram a exaustiva caminhada com pouca disposição. Não havia motivos para retardar a peregrinação, pois, a necessidade de alimentos, água e remédios para as doenças que lhes acometiam era premente. Desolados e incomodados pelo cansaço físico, andavam como autômatos, destituídos de mínima vontade.

As crianças, com os pés estropiados, e igualmente famintas e sedentas, conseguiam divertir-se correndo e atirando pedras nos raros passarinhos que cortavam o firmamento de um azul celeste límpido, sem uma nuvem sequer. A garotada também se divertia escorraçando os bandos de urubus que se refestelavam das carcaças dos animais vitimados pela fome.

O grupo chegou à capital em passos lentos e dolorosos. Durante o longo percurso, enfrentaram as maiores adversidades de suas vidas. Episódios dolorosos de uma caminhada desprovida do mínimo conforto lhes fartaram a paciência. O físico depauperado, a fome e as doenças endêmicas transportadas em seus corpos esqueléticos, testemunhavam o passado de dores.

Dos duzentos participantes da peregrinação, vinte e dois faleceram durante o percurso, vitimados pela fome e pela peste. Os amigos de infortúnio os sepultaram em covas rasas. Uma cruz de madeira rústica fora posta em todos os sepulcros, sem a indicação do nome do morto. Dessa forma, aguardavam as orações das pessoas em trânsito pelo local. Talvez, elas rogassem a Deus pelo descanso eterno do anônimo falecido.

Cada féretro correspondia à nova derrota para o flagelo das secas. Parentes dos mortos adotavam os filhos órfãos, sem lhes garantir o sustento. Davam-lhes o necessário para enfrentarem a dor opressora do espírito e do coração.

Nos primeiros momentos da chegada à capital, depararam com um carregamento de víveres pertencente ao governo da Província. Homens, mulheres e crianças não resistiram à tentação de atacar o comboio. A fome não podia esperar a distribuição franciscana e demorada. Foram à luta. Os guardiões do governo agiram com violência, na tentativa de evitar a consumação do assalto. Entre a apropriação de um saco de farinha ou de uma manta de carne-seca, os lombos magros exibindo as costelas salientes eram vigorosamente castigados. O preço da ousadia foi aviltado em demasia.

O governo os anistiou. Reconhecera o estado famélico dos saqueadores. Levados aos barracões, ali se instalaram por tempo que somente Deus, em sua sublime misericórdia, podia reduzi-lo pondo fim ao sofrimento provocado pela seca.

No próximo capítulo, você lerá mais um pouco. Gostando, claro!